terça-feira, agosto 31, 2004

O peso da reacção de Paulo Portas

De facto, o barco da WoW não vem resolver, de todo, o problema do aborto em Portugal. Trata-se de uma medida que se destina a dar visibilidade nacional e internacional a esta questão. Daí que acusar a WoW e as associações a ela ligadas de procurarem provocar agitação social é constatar o óbvio.
O tema do aborto não se analisa por linhas direitas e o caso do barco da WoW não escapa à regra. Ser contra a atracagem das WoW não é ser contra a IGV, assim como ser a favor da IVG não é, necessariamente, ser a favor da iniciativa da WoW. Mas, concordando ou não com os propósitos da organização, é imperioso garantir que se respeita todo o enquadramento legal e as convenções às quais Portugal está obrigado.
Sabemos que, todos os anos, aproximadamente cinco mil mulheres dão entrada nos hospitais em consequência da prática clandestina de abortos (ainda que mal comparado, corresponde aproximadamente ao triplo do número de mortos resultante da sinistralidade rodoviária). Calcula-se ainda em algumas dezenas de milhar o número de abortos anualmente realizados nestas perigosas condições. O problema é iniludível e exige atenção e acção imediatas, mesmo que à custa de uma iniciativa como esta.
O objectivo das WoW será, sobretudo, captar a atenção dos media e reacender o debate. Reacender não será bem o termo porque nem antes, nem durante, nem depois da campanha para o referendo se discutiram aprofundadamente os contextos e as consequências do aborto em Portugal. Evidentemente, o ruído interessa a quem não quer uma abordagem séria e profunda. Evidentemente, sempre haverá quem queira aparecer na fotografia, mesmo que pouco ou nada tenha contribuído para que se encontre uma solução concreta. É quase inevitável que tenhamos que suportar uns e outros. O fundamental, no entanto, é destrinçar entre o ruído e o cerne da questão e entre os agentes realmente envolvidos e os oportunistas.
Mergulhado na inércia, como estava, o debate nem poderia aquecer muito se não fosse a reacção exagerada por parte do governo. As associações anti-aborto encarniçaram-se e o ministro da Defesa foi atrás do seu balão de oxigénio eleitoral para um cenário pós-coligação (ideia pertinentemente defendida por Ana Sá Lopes). Ao romper com as normas legais, o ministro descobriu umas das faces mais negras deste governo – a subversão das leis e a instrumentalização do aparelho de Estado ao serviço das causas partidárias –, desacreditando, por arrasto, a imagem internacional do país. Paulo Portas fez mais pela visibilidade da iniciativa das WoW do que a própria organização conseguiria sozinha.
O PP e o PSD arriscam-se a pagar cara a factura deste descontrole autoritarista. A memória deste episódio vai certamente sobreviver até aos próximos actos eleitorais, onde lhes poderá ser bastante penosa. O fundamentalismo que Paulo Portas implicitamente evocou não atrai senão os fundamentalistas. Da mesma forma que muitos defensores da IVG não se revêem em acções desta índole, também muitas pessoas que não concordam com a IVG não se revêem no tratamento que o ministro reservou para as activistas. Este governo, que já carrega os estigmas da falta de legitimidade e do populismo, verá também adicionado à sua imagem de marca o uso irreflectido da força e o desrespeito pela lei. Já para não falar da mais que previsível derrapagem no défice. Só vantagens, portanto.

segunda-feira, agosto 30, 2004

A feira está montada, por que é que ele não aparece?

Como já refere Ana Gomes, onde é que se meteu Paulo Portas?

Foi para isto?

Nestes dias em que a Europa volta a ser impedida de entrar em Portugal, em que temos um governo a carecer de legitimidade, em que a legalidade é subvertida à medida das conveniências ideológico-partidárias, em que os meios do estado são instrumentalizados para cercearem a livre escolha dos cidadãos, em que a hipocrisia ultrapassa todos os limites e a dissimulação substituiu a razão, nestes dias recordemos dois poemas.

Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz.

Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar
E perder

Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci

E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Teu lugar a mais
Tua ausência em mim
Tua paz
Que perdi
Minha dor que aprendi
De novo vieste em flor
Te desfolhei...

E depois do amor
E depois de nós
O adeus
O ficarmos sós
(E Depois do Adeus)

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
(Grândola Vila Morena)

Perigo para a saúde pública



Imagem gentilmente retirada d'A Natureza do Mal

sexta-feira, agosto 27, 2004

Então quando se acabam as férias, nem te digo nada


Tanto quanto parece

Em Portugal, o aborto ainda é crime.
Subir a bordo de navios não é crime.
Em águas internacionais aplicam-se as leis do país ao qual pertence o pavilhão dos navios.

Ou não é assim?

Neo-fascismo

A denúncia apresentada por um grupo anti-aborto contra os proprietários, utilizadores e promotores do “barco do aborto” (triste nome) revela imediatamente uma coisa. Estas pessoas não se limitam a querer impedir a prática do aborto, medicamente assistida, em Portugal. O que elas querem é impedir as mulheres portuguesas de abortar, onde quer que seja. Ou seja, não se trata de regular os comportamentos legalmente admissíveis em território nacional, mas sim de condicionar o comportamento de uma parte da população portuguesa, independentemente da sua localização geográfica.

Esses calões...

O Público faz manchete com a intenção, por parte dos professores, de pedir indemnizações pelos erros nos concursos de colocação. Ainda não foi possível apurar se M. Fátima Bonifácio defende que sejam antes os alunos a pagar.

quinta-feira, agosto 26, 2004

TPC

Ler moções.

Abraracourcix

Há alturas em que só apetece apoiar o queixo nas mãos e murmurar: sinto-me tão cansado, mas tão cansado...

quarta-feira, agosto 25, 2004

JO

Pode ser apenas má vontade, mas parece que os Jogos Olímpicos têm, claramente, modalidades a mais, muitas das quais perfeitamente absurdas.

O cheiro dos blogues

A decisão já tinha sido tomada algures no início de Junho, ou talvez até no final de Maio. Mas tudo se consumou apenas em Agosto, numa segunda-feira que marcou definitivamente o fim das férias. Nessa manhã a sala estava vazia e emanava aquele cheiro de escritório, que é tão típico quanto indefinido. O teclado foi receptivo e tudo foi feito com o sabor das pequenas aventuras. O resto do dia não tem história. No entanto, na memória intacta do cheiro dessa manhã permanece uma certeza: os escritórios cheiram a blogue.

terça-feira, agosto 24, 2004

Grandes lições do quotidiano

Se a porta não abre quando empurras, antes de começares a rodar freneticamente o manípulo, experimenta puxar.

Conhecimento especialmente valioso quando mobilizado em espaços públicos.

O futebol, a bandeira, o carro e a casa

Num país com poucas referências culturais significativas, não surpreende que um fenómeno como o futebol ganhe a dimensão que actualmente tem. O futebol é aparentemente fácil e suficientemente imediato para ser debatido por virtualmente toda a gente que lhe preste um mínimo de atenção. Desta maneira, toma o lugar de uma das principais referências para uma vasta maioria da população. Os adeptos identificam-se com o seu clube, com as suas façanhas, com as suas agruras e com as suas travessias do deserto. Sabem a história, sabem os nomes e sabem as finanças. Discutem tudo, desde a política de contratações aos aumentos de capital. Possuem, inegavelmente, um campo onde a informação, mesmo que incompleta, distorcida ou manipulada, chega em doses maciças, pronta a ser processada. Não há tema que consiga rivalizar com o apelo do futebol, apresentado em todo o seu glamour, transpirando competição, dinheiro, fama e promessas sucesso.
A necessidade humana de pontos de referência é, por cá, colmatada pela adesão ao clubismo. Uma boa parte da população, quer siga atentamente o desporto ou não, desenvolve uma relação de preferência mais ou menos profunda com algum clube. E não é certamente por acaso que as principais referências se resumem basicamente a três clubes. Também aqui se pode aferir o reduzido número de alternativas. O sistema foi e continua a ser carinhosamente complacente com o triunvirato de sempre. O estatuto extraordinário concedido ao futebol é particularmente notório nas benesses concedidas especialmente aos ditos três grandes. Ajudas para lá do limite do razoável que se destinam a alimentar o monstro, porque ninguém sabe para onde se virariam as atenções caso o futebol deixasse de ser o centro do mundo.
Numa sociedade que regista níveis insuficientes nas habilitações académicas, na qualificação profissional e no alfabetismo funcional, não se pode esperar que os modelos referenciais adquiram grande complexidade. Com instituições socializadoras ainda fortemente condicionadas pela herança do Estado Novo, o resultado só poderia ser o que se tem à vista. Os graus de exigência são baixos, as expectativas e os objectivos alcançados são, quase invariavelmente, baixos. Salvam-se algumas honrosas excepções, que assumem a forma de profissionais brilhantes ou de mega-acontecimentos extraordinários, e que vão, a espaços, fornecendo injecções de ânimo nas massas. Mas a grande consequência social desses 48 anos, que está a ser paga pelas actuais novas gerações, são modelos de socialização desajustados das necessidades inerentes às condições actuais da realidade social. Modelos que, durante meio século, promoveram o conformismo, o compadrio e a oligarquia.
Com a promoção de tais modelos, não é de admirar que as consequências se façam sentir em vários sectores, desde a Administração Pública ao sector privado, passando, claro, pelo ensino, onde é sempre mais fácil atirar as culpas para os alunos, como se os maus desempenhos e o desinteresse surgissem de geração espontânea, desenquadrados dos contextos sociais, culturais e económicos em que na verdade radicam.
O meio escolar e o meio profissional estão orientados para uma divisão social do trabalho, fornecendo igualmente referências para a identidade social dos indivíduos. Sem possibilidade de adquirir referências nestes meios, torna-se necessário que se encontrem as matrizes referenciais substitutas. Assim sendo, com as fracas habilitações académicas somadas à desqualificação profissional, qualquer indivíduo se esforçará por encontrar outros meios de construção e valorização da identidade social. Em Portugal essa função é suprida por dois fenómenos de uma forma muito especial. Um já foi aflorado, tratando-se do futebol. O outro é o consumo.
O consumo contribui para a satisfação não só das necessidades básicas como também para a definição da identidade social, numa vertente de diferenciação ontológica. Algo que se pode sintetizar na fórmula: diz-me o que consomes, dir-te-ei quem és. O indivíduo que se vê sem uma referência que o defina num campo académico ou profissional, quer seja pelas limitações no primeiro ou pela desmotivação e desqualificação do segundo, encontra-se numa situação socialmente frágil, em que precisa de se definir, tanto para si como para os outros. O consumo funciona então como um auxílio precioso, uma vez que essa pessoa se pode passar a definir pelo que consegue e escolhe comprar.
Dentro dos inúmeros bens de consumo, um dos mais notórios é seguramente o automóvel. A importância do automóvel enquanto símbolo social, com todas as suas nuances, é perceptível no universo das representações sociais construído à sua volta. As marcas e os modelos estão associados à performance, à aventura, à fiabilidade, à segurança, etc. Quando se compra um automóvel, compra-se uma imagem, um símbolo, e, em certa parte, uma identidade à qual se quer ver associado.
Um aspecto ilustrativo destas combinatórias de identidade social é o tuning. Este é um fenómeno característico, sobretudo, de estratos sociais mais baixos, onde a qualificação académica e profissional é menos provável. Assim, em grupos sociais onde a diferenciação social entre os seus membros não é muito significativa, o automóvel, singularizado e particularizado ao máximo pelas transformações estéticas operadas, constitui um instrumento de diferenciação da identidade social do seu proprietário.
Sendo este um caso paradigmático, não se pense que o poder do automóvel enquanto símbolo se esvanece à medida que subimos na estratificação social. Simplesmente, esse símbolo é apercebido de outras formas e complementado com outros símbolos, quando existentes.Nesta óptica, é compreensível o que se passou com o episódio da bandeira nacional. Como se pôde constatar, as bandeiras desapareceram primeiro das viaturas e só mais tarde das janelas das casas. A leitura que se pode fazer é que o automóvel vale tanto como símbolo por si só que chega a suplantar o simbolismo da casa, sendo difícil para o seu possuidor imaginá-lo mesclado com outros símbolos, sobretudo se não servirem para realçar a sua singularidade. A particularidade do futebol e do consumo que foi referida anteriormente é especialmente notória se considerarmos que tanto um como outro servem para diferenciar. O que é relativamente fácil de compreender no caso do consumo também se torna claro no caso do futebol quando nos apercebemos que a escolha do clube X implica, quase automaticamente, uma oposição aos clubes Y e Z. É pois com bastante curiosidade que se constata que esta lógica de diferenciações foi subvertida precisamente quando o automóvel se associou ao futebol. A bandeira nacional, que na verdade não simbolizava outra coisa que não a selecção nacional de futebol, ao mesmo tempo que ornamentava o veículo, servia como factor de coesão. Mas, para que não se pense que não existe aqui igualmente um reverso da medalha, esta coesão social deu-se à custa de uma outra diferenciação. Os portugueses “uniram-se” para afirmarem a sua diferenciação perante os quinze grupos nacionais tidos como adversários. O conflito latente e a necessidade de definir diferenças não afrouxam.

segunda-feira, agosto 23, 2004

De regresso

Lentamente, sem grandes emoções, o regresso ao primado do teclado e do monitor, aos dias pré-formatados, à pequena depressão, ao apetite pela ironia, à vontade de fugir. Curiosamente, as férias foram boas, obrigado.

quarta-feira, agosto 18, 2004

O respeito e o medo

Começa a ser comum encontrar veículos que exibem um número de contacto para, deduz-se, eventuais reparos ao comportamento do seu condutor. As frases que acompanham o referido número não deixam dúvidas, chegando mesmo a inquirir directamente os restantes automobilistas sobre o estilo de circulação do condutor.
O problema da condução e da sinistralidade assume proporções preocupantes em Portugal. Não está, portanto, em discussão a necessidade de levar a cabo medidas que ajudem a inverter esta tendência. Mas já é bastante discutível se este será o melhor método de o fazer. O comportamento ao volante pauta-se, muitas vezes, por uma desresponsabilização quase total e por um desrespeito pelas normas e pelas pessoas. No entanto, o método a que algumas empresas estão a recorrer, por si só, não promove essa responsabilidade e esse respeito por terceiros. Pelo contrário, o que está em causa é a promoção de um clima de medo. O que é manifestamente insuficiente, uma vez que, sempre que as condições de manutenção desse clima de medo não estejam plenamente satisfeitas, não haverá por que não violar novamente as regras.
Mas o que se torna mais preocupante é que este método não depende de um exercício de autoridade das entidades responsáveis. O controle não compete às autoridades, nem sequer a equipas de fiscalização das próprias empresas. Na realidade, trata-se de um convite a todos os utilizadores das estradas para se transformarem em delatores. Por detrás destas situações encontra-se uma promoção, mais explícita que implícita, do espírito de denúncia. Assume-se, de uma forma latente, a incapacidade das autoridades para efectuarem o seu trabalho e transfere-se o fardo para a sociedade em geral. Em última análise, todos passamos a ser polícias de alguém. Sendo que, naturalmente, a apreciação se rege pelos critérios absolutamente subjectivos do observador e pode ser deturpada ao sabor das incorrecções de interpretação e dos lapsos de memória. Trata-se de um passo na direcção de uma sociedade assustadora, baseada sobretudo no medo e na denúncia, que não faz nada pela construção perene de comportamentos responsáveis.

quinta-feira, agosto 12, 2004

Três desejos e uma pergunta

Um amor recíproco, uma casa que o abrigue, um rendimento que a mantenha. Como é que uma lista tão pequena se pode tornar tão exigente?

quarta-feira, agosto 11, 2004

1500 peças

Isto vai de mal a pior, dizes tu enquanto procuras lugar para mais uma peça do puzzle. Eu sei que te referes ao puzzle, mas bem podia ser a este país que resultaria no mesmo.

quarta-feira, agosto 04, 2004

Um plano ideológico para uma alternativa

A proposta que José Sócrates apresentou segunda-feira no Público reforça a ideia que já se tem do seu autor. Está presente uma lista de boas intenções, mas que, no entanto, são abordadas com uma certa superficialidade. Encontra-se também uma apologia centrista inequívoca que torna óbvia a vontade de José Sócrates em levar o PS de novo para o centro. O que não é propriamente uma novidade. Apelos nesse sentido já vinham sendo feitos, desde bem cedo, durante a liderança de Ferro Rodrigues. O que importa compreender é que levar o PS para o centro implica caminhar no sentido da direita. É isso que Sócrates se prepara para fazer, caso ganhe as eleições que vai disputar.
A questão já ameaça começar a ser recorrente neste blogue: qual é o melhor posicionamento para o PS? Há, pelo menos, duas perspectivas para abordar esta questão. Em primeiro lugar, podemos perguntar-nos sobre o que mais convém ao PS, do ponto de vista eleitoral. Em segundo lugar, podemos interrogar-nos sobre o que necessita o país, do ponto de vista do sistema democrático de partidos. As duas abordagens estão, porém, intimamente relacionadas. Aparentemente, ao PS convém uma direcção capaz de ganhar os próximos desafios eleitorais, sobretudo as legislativas em 2006 (se não for mais cedo). Mas a que preço? Convirá ao PS uma deriva centrista, quase puramente eleitoralista?
O alinhamento dito centrista é, na verdade, um alinhamento à direita. A candidatura de José Sócrates pretende, de uma forma assumida, retomar o caminho guterrista. O problema é que a doutrina guterrista definhou, vítima de uma incapacidade quase patológica de se afirmar num sentido ideológico. O resultado é o que já se conhece. Abriram-se as portas para um governo de direita que não satisfaz os portugueses e não providencia melhorias nas suas vidas, nem a curto, nem a médio prazo. Mas, ainda pior para o partido, ficou a impressão, muito alimentada pela comunicação social, que o PS não conseguiria gerar um projecto alternativo credível num futuro próximo. Verdade seja dita, para isso também contribui, e muito, o facto de a liderança de Ferro Rodrigues, assim como a própria candidatura de José Sócrates, contarem com muitos nomes do tempo de António Guterres. Assim, o eleitorado ficou confrontado com uma enorme semelhança nos nomes, ao mesmo tempo que a diferença ideológica que Ferro Rodrigues tentou introduzir era incessantemente atacada e limitada (no duplo sentido do que Ferro não conseguia fazer e do que não o deixavam fazer). Ainda assim, a liderança mais à esquerda de Ferro Rodrigues não impediu que o PS registasse uma votação histórica nas eleições europeias, pese embora os muitos motivos que se apontam para tentar diminuir uma derrota estrondosa da direita coligada.
De um lado temos, então, o projecto de Ferro Rodrigues, com os defeitos que tinha e mais os que lhe quiseram impingir, que se mostrou capaz de lutar e vencer eleições. Não chegando a ser governo, gorou-se a oportunidade de avaliar a sua capacidade para cumprir o que vinha preconizando. Do outro temos uma solução já conhecida, herdeira de uma política que em poucos anos desiludiu o eleitorado. A escolha será entre viabilizar uma reedição do guterrismo ou devolver a oportunidade a um projecto mais ideológico, mais concreto e definido, que se assuma mais distante do que tem vindo a ser feito em termos de governação. O risco que é apontado a esta última proposta é o de ser demasiado radical e afastar o eleitorado. Mas o PS não foi, não é e nunca será um partido radical. E os eleitores, para infortúnio dos críticos, estão bem conscientes disso.
Tendo reflectido sobre o que mais convém ao PS, podemos agora discutir o que mais convém ao sistema político português. Para complicar um pouco mais as coisas, podemos ainda imaginar o sistema partidário com uma direita constituída pelo PSD e pelo PP, podendo tomá-los coligados ou autónomos. No primeiro caso, considerando que o PP arrastaria o PSD mais para a direita, abrir-se-ia um espaço ao centro onde o PS poderia colher votos. Mas a verdade é que, partindo do princípio de que dificilmente haverá transferência de votos do PP para o PS, muito do eleitorado mais afecto ao PSD não morre de amores pela esquerda, qualquer que seja a sua posição. E, mesmo não se revendo numa coligação/fusão PSD-PP, provavelmente teria tendência a manter-se fiel ao seu campo político. No segundo caso, tomando o PSD e o PP como concorrentes eleitorais autónomos, uma deriva centrista do PS, acompanhada de uma deriva centrista do PSD, talvez como resposta a uma necessidade de não se ver confundido com o campo do PP, sobretudo num período pós-coligação, deixaria os dois partidos a disputar o mesmo eleitorado. Gerar-se-ia uma aproximação de facto entre as ideologias do PS e do PSD. Desta feita, o eleitorado ficaria com dois partidos demasiado semelhantes. A alternância não produziria quaisquer resultados palpáveis e, certamente, jamais se constituiria como alternativa. A pluralidade do sistema partidário ficaria extremamente reduzida. Como sabemos, sem pluralidade não se pode falar verdadeiramente em democracia, pelo que é da sanidade do próprio sistema que estamos a falar. Mais ainda, com os dois principais partidos mergulhados numa crise de identidade e com um sistema com menos referências será muito mais fácil o surgimento de extremismos de carácter político. Um cenário destes seria campo fértil para facções de índole hiper-moralista, autoritarista e totalitarista. Os inconvenientes são demasiado óbvios para explicá-los.
O cenário traçado talvez pareça demasiado negro, ou mesmo catastrofista. Mas é preferível falar abertamente das coisas como elas poderão ser para que depois ninguém se possa queixar de que não foi avisado. Os sinais existem. A forma como os interpretamos e como agimos em função disso é que pode mudar. Precaver o futuro começa com as acções que se tomam no presente. Para que amanhã não seja tarde demais.

segunda-feira, agosto 02, 2004

Vacaciones

Aqui o escriba entrou oficialmente em período de férias. Como a prioridade, naturalmente, não passará por estar o dia todo à frente de um computador, a atenção aos blogue vai ser menor. Mas, como se pode ver pela amostra, não será nula. Até já, então.