segunda-feira, abril 12, 2004

Sinistralidade rodoviária

Foi um fim-de-semana negro, mais um, nas estradas portuguesas. Pela primeira vez, desde que me lembro de prestar alguma atenção a isto, referiu-se outra causa que não o excesso de velocidade para justificar alguns acidentes. Não quero ser mal interpretado. O excesso de velocidade é importantíssimo na sinistralidade e contribui de forma decisiva para a gravidade das consequências dos acidentes. No entanto, o problema não se esgota aí.
Julgo que fazer decrescer os números da sinistralidade passa por dois campos. O primeiro diz respeito ao que pode e deve ser feito pelas autoridades competentes. Nomeadamente, o traçado, a qualidade de construção, o estado do pavimento, a sinalização e a iluminação, entre outros, são aspectos que, em muitos casos, estão longe de ser os desejáveis. Corrigindo o que está mal feito e evitando, através de um empenho sério, que se voltem a repetir os erros do passado, obter-se-ão, inevitavelmente, consequências positivas.
Do mesmo modo, também o próprio sistema de ensino deve ser repensado. As escolas de condução orientam o seu ensino para situações totalmente irreais. É verdade que tudo resultaria muito melhor se todos cumprissem as regulamentações, mas essa não é a realidade. Sem querer corromper uma orientação do ensino vocacionada para o estrito cumprimento das regras, julgo que seria benéfico preparar os futuros condutores para algumas das situações com que se irão deparar. A preparação dos condutores para situações limite, com as quais inevitavelmente se confrontarão, poderá ajudar a melhorar o seu desempenho nas mesmas. A simulação de situações de perigo eminente ou de condução em condições climatéricas adversas constituem um exemplo prático de inegável valor. Porque, por exemplo, é totalmente diferente falar das medidas a adoptar em caso de piso escorregadio ou de obstrução da via, de um ponto de vista meramente teórico, e experimentar as reacções do veículo automóvel nessas mesmas condições. Assim como é importante que o condutor compreenda a distância que o veículo automóvel percorrerá antes de se imobilizar e quais as sequelas físicas de uma colisão.
Um terceiro factor está relacionado com o papel das forças policiais e das soluções legislativas adoptadas. Estas últimas deverão reflectir a gravidade que este fenómeno atinge em Portugal. Um agravamento das sanções, quer em termos pecuniários quer em termos de suspensão temporária ou permanente da licença de condução, terá de ser complementado por uma sensibilização dos órgãos judiciais para a sua correcta aplicação. Da mesma forma, também as forças policiais deverão adoptar uma postura de controlo, fiscalização e implementação das regras definidas, muito embora, neste caso, seja sempre preferível uma atitude de prevenção, rigorosa e pedagógica, a uma atitude de mera punição.
O último aspecto neste campo diz respeito às campanhas de prevenção rodoviária. Estas devem ter em comum a necessidade de sensibilizar a população para a sinistralidade rodoviária. Mas a forma como o devem fazer deve depender do tipo de público que se pretende atingir com cada campanha. Como é claro, fazer prevenção junto de crianças, adolescentes, recém-encartados ou condutores experientes é bastante diferente. As campanha deverão ser desenvolvidas tendo em atenção o tipo de representações que cada um destes grupos constrói, podendo, a partir delas, operar uma mudança de mentalidade ou de comportamento. Uma estratégia mal concebida, especialmente junto dos mais jovens, poderá não só não surtir efeito como também conduzir a resultados contraproducentes.
O segundo campo de intervenção é aquele que diz respeito a cada um de nós, de forma directa ou indirecta, enquanto condutores ou até meros passageiros. É óbvio que o cumprimento das regras de circulação passa pelas acções ou omissões dos intervenientes directos, isto é, dos condutores. Sendo certo que o que ficou dito acima contribui para alterar a forma de estar ao volante, é também garantido que este comportamento é também um fenómeno cultural. Aquilo que é muito comum agrupar no conceito de civismo, ou falta dele, não passa de manifestações dos valores interiorizados nos processos de socialização. O respeito pelas regras, o relacionamento com o outro, mesmo que mediado por máquinas como os veículos automóveis, as auto e hetero-representações sobre os comportamentos a assumir e as capacidades para agir em determinada situação são um espelho dos modelos culturais que se transportam para o acto da condução. Assim, se estamos interessados em alterar de forma significativa a realidade actual, convém começar pelo nosso próprio comportamento. Nesta óptica, o respeito pelos limites estabelecidos é um imperativo. Até porque o respeito pelo cumprimento das regras traz sempre uma vantagem acrescida quando chega o momento de se exigir o mesmo comportamento de uma outra pessoa. Esta fórmula será tanto mais eficaz quanto maior for a sua divulgação. Ou seja, interessa que o condutor não se limite a cumprir mas que publicite, junto dos que lhe são mais próximos, a sua conduta. Mais ainda, seria também importante que se manifestasse a repulsa sentida pelos comportamentos perigosos ao volante. Este tipo de pressão social também é perfeitamente passível de ser exercida pelos passageiros. Estes podem e devem exercer pressão sobre o condutor de forma a influenciar o seu comportamento. Tanto mais que, se a reprovação provier de pessoas do círculo próximo deste último, terá um peso adicional determinante.
Seria importante que as pessoas tivessem vergonha de apresentar as suas façanhas automobilísticas constituídas pelas pequenas competições na auto-estrada, os contra-relógios em circuito citadino, as ultrapassagens temerárias, as soluções ‘milagrosas’ de fuga às filas de trânsito, o desrespeito pela sinalização luminosa, o estacionamento selvagem, etc. Somente quando desaparecer a complacência perante este tipo de comportamento, quando as elevadas velocidades médias alcançadas nas viagens deixarem de ser motivo de amena cavaqueira, estaremos a entrar numa fase de alteração de mentalidades. O desrespeito pelas regras pode ser ilegal mas só se torna desviante se for praticado por uma minoria da população e se for sancionado negativamente pelos restantes. E se há sanções que dependem exclusivamente das autoridades, outras há que estão ao alcance de cada um. Assim haja vontade de mudar alguma coisa.