terça-feira, abril 06, 2004

Uma igualdade ilusória

A realidade social é fértil em criar ilusões. A familiaridade do quotidiano leva-nos a dar por garantidos certos aspectos que exigem uma reflexão mais atenta. Um desses casos é o da emancipação da mulher. O século XX representou uma era de enormes progressos para a mulher, sobretudo no mundo ocidental. De tal forma que chega a ser comum a ideia da igualdade de oportunidades. O que está longe de ser uma realidade.
Mais concretamente, a divisão sexual do trabalho e os papéis associados à mulher estão a alterar-se. Mas as transformações têm sido percepcionadas como mais eficazes do que realmente serão. Embora vigore a ideia de que as mulheres estão a aceder a categorias de estatuto social que antes lhes estavam vedadas, esse acesso ainda se encontra muito condicionado, quer em termos de vagas quer em termos de remunerações e regalias.
Também a divisão de tarefas no ambiente familiar se apresenta de forma ambígua. Apesar da emancipação da mulher, a divisão sexual de tarefas domésticas continua muito vincada. Neste campo, como no anterior, não se pode tomar como termo de referência as camadas urbanas com melhores níveis de educação e acesso à informação, que terão, previsivelmente, maiores capacidades de negociação justa da divisão de tarefas.
A sociedade patriarcal que foi erigida e cultivada no regime ditatorial _embora o preceda_, juntamente com o comodismo social e as limitações à mobilidade social, ainda faze sentir o seu peso. Quando confrontados com situações de sucesso feminino, não deixamos de demonstrar quanto esse fenómeno é estranho. Consoante o maior ou menor apego à normalidade herdade desses tempos, reagimos com maior desconforto ou com maior satisfação. Mas, qualquer que seja a alteração suscitada, estamos perante um dos melhores indicadores para demonstrar a excepcionalidade dessas situações.
Nestas condições, é legítimo perguntar quais as reais condições de igualdade de oportunidades e quais as reais condições de possibilidade de escolha das mulheres portuguesas. Quando uma mulher portuguesa está pronta a encetar uma carreira profissional e a amadurecer as suas relações amorosas, terá consigo, em princípio, perto de 20 anos de socialização. Sensivelmente duas décadas de reprodução de modelos que ainda não fazem inteiramente parte do passado. Mas, mais ainda, estará inserida numa sociedade que desenvolveu um culto pelo sucesso e que criou, nos últimos 30 anos, uma falsa imagem de facilidade de mobilidade social. O que constitui, neste caso, um último obstáculo a ser superado. Para além das dificuldades naturais de imposição numa sociedade masculinizada, a mulher portuguesa luta também contra esta imagem irreal de liberdades e oportunidades que, de facto, não são tantas como parecem ser. Trata-se de uma barreira psicológica, baseada na divergência entre as representações das oportunidades disponíveis e o acesso/sucesso concreto na mobilidade social, passível de induzir sentimentos de frustração e de dúvida quanto às reais capacidades individuais para desenvolver um projecto de vida ambicioso.