terça-feira, março 30, 2004

Em defesa da importância das datas

O Adufe incita a uma reflexão sobre o pós 25 de Abril. O convite explicita que não se concentrem as atenções sobre a data concreta do 25 de Abril de 1974 e que se aborde sobretudo as suas consequências. A ideia é óptima, mas não vejo como é que se pode separar uma coisa da outra.
A História, ma medida em que produz e reproduz formas culturais, é uma parte fundamental da Sociologia. O país que somos hoje não é inteligível sem se analisar o país que temos sido nas últimas décadas, incluindo o período ditatorial. O Portugal do pós 25 de Abril ainda alberga muitas das lógicas nascidas e acarinhadas pelo Estado Novo. A pequenez, a falta de ambição, o conformismo, a preguiça empreendedora e outras características nefandas não nasceram de geração espontânea. Foram cuidadosamente implantadas e potenciadas pelo modelo social Salazarista. Certamente, a raiz dos inúmeros problemas nacionais não se funda somente aí. O mal já virá de outros tempos. Mas a contribuição da ditadura é fundamental para moldar a nossa realidade actual por duas razões especiais. Porque abarca um período de meio século de obstinado obscurantismo social e porque se encontra cronologicamente tão perto do momento actual.
É impossível aferir o que há de bom no período democrático sem o fazer utilizando como referência a realidade anterior. Por isso os ‘Rs’ têm mesmo muita importância. Mesmo que pareça que se discutem pormenores insignificantes, a carga simbólica do 25 de Abril não é susceptível de ser menosprezada. Falar de Revolução ou de Evolução não é a mesma coisa. A conotação que as palavras assumem é muito importante, sobretudo neste contexto em que se estão a utilizar. Abril representa uma evolução quantitativa e qualitativa na sociedade portuguesa. Mas é muito mais do que isso. Foi mesmo um processo revolucionário, por muito que isso custe a algumas pessoas. O regime não caiu de podre. Teve que ser empurrado. Isto é um facto inegável que alguns tentam escamotear, provavelmente devido à orientação política do processo revolucionário. A incoerência nesta argumentação é gritante. Nega-se a revolução, mas louvam-se as movimentações que se seguiram para reverter a orientação política que o país estava a levar. Como se a segunda não tivesse surgido como resposta à primeira.
Considerar que a utilização indiscriminada da terminologia não ajuda a esbater o significado das acções e dos momentos é, no mínimo, ingénuo. No caso específico do 25 de Abril, chega a ser insultuoso para todos os que participaram na construção de um Portugal livre e democrático. Sobretudo, é insultuoso para os que arriscaram a vida por essa causa, para os que perderam anos da sua vida nos calabouços do regime, para os que deram os melhores anos da sua vida, para os que trocaram o seu bem-estar pelo nosso, para os que deram a sua vida pela garantia da nossa. Sim, as palavras têm muito peso. São 48 anos de trevas, de sofrimento e de morte que estão em causa. Meio século que terminou às mãos de um grupo de homens armados dispostos a mudar tudo. Se isto não é uma revolução, então o que é uma revolução?
O Portugal de 2004 tem tantas limitações que é difícil enunciá-las, mesmo que superficialmente, sem cometer a injustiça de deixar algumas das mais significativas de fora. Ainda assim, cada dia que passa desde Abril de 74 é um dia melhor do que os que o antecederam. O que houve de bom nestes 30 anos de democracia? A resposta encontra-se na própria pergunta do Adufe. É a democracia, a liberdade de exercer os direitos com autonomia e responsabilidade. Essa liberdade, esses direitos, essa democracia, que só foram consagrados na madrugada do dia 25 de Abril de 1974.
Mesmo que o desejo manifesto não seja o de branquear o período ditatorial, certos jogos de palavras, certos raciocínios rápidos, têm como consequência a banalização das mudanças. Falemos do que Abril cumpriu, falemos do que Abril não cumpriu, falemos dos vícios e das virtudes. Mas não se banalize a liberdade e a falta dela. Não se banalize a importância das diferenças, sob pena de se banalizar as conquistas e o esforço dos que as alcançaram.