terça-feira, setembro 07, 2004

A escravatura no século XXI

O Abrangente, numa bela fotografia, recorda as fábricas de tijolo do Paquistão, realidade porventura pouco conhecida. Diz o Evaristo que se trata de um "trabalho duro e mal remunerado". É seguramente um trabalho muito duro, onde se corre mesmo risco de vida ou, no mínimo, de sofrer queimaduras graves. O que já não é tão imediato é o facto de as fábricas de tijolo serem um dos maiores albergues de trabalho escravo no mundo.
A escravatura é uma forma abjecta de exploração humana, mas, nalguns casos, assume dimensões sociológicas de extremo interesse. Neste caso particular, como consequência dos sistemas de valores vigentes entre algumas comunidades no Paquistão (mas não só), os esclavagistas não precisam de ser preocupar com a fuga dos seus escravos, uma vez que estes, por compromissos de honra, se sentem obrigados a permanecer nos locais. O trabalho escravo tem origem na absoluta miséria em que vivem muitas pessoas nesta região, o que as impele a contrair empréstimos que se destinam à aquisição de bens alimentares e muitas vezes são usados, na íntegra, para pagar dívidas já existentes. Sem dinheiro, estas famílias não têm mais do que a sua mão-de-obra para oferecer como garantia de pagamento. Ficam assim presas a um regime de trabalho não remunerado até que o credor julgue satisfeita a dívida. Não existe qualquer forma de controlo sobre o montante pago por estas famílias, sendo que o credor possui um poder absoluto sobre os termos do acordo que estabeleceu, podendo manipulá-los à sua vontade e conveniência, prolongando a exploração dos devedores para além de todos os limites. De uma forma geral, as dívidas vinculam toda a família e são extensíveis às gerações seguintes.
A única forma destas famílias se libertarem do seu credor passa por contrair um novo empréstimo junto de outro credor. A situação de exploração mantém-se, somente mudando o explorador. Esta decisão é tomada sobretudo quando as famílias sentem que as suas mulheres correm o risco de ser desonradas no local onde se encontram. Este é um motivo que se sobrepõe mesmo aos maus-tratos que possam sofrer durante a sua situação de escravidão.
A escravatura é uma realidade bem viva em demasiadas regiões do mundo. Ao contrário do que se possa pensar, muitas vezes está ainda enraizada nas tradições locais, ligada à miséria humana e aos códigos de honra vigentes. Mas é também possível encontrar situações no mundo ocidental, tendo sido relatados casos de escravatura, por exemplo, em grandes centros urbanos em França e Inglaterra. Não fará sentido comparar o carácter esporádico destes macabros relatos com a exploração sistemática que se regista noutros locais, mas, em qualquer dos casos, esta é uma realidade que não merece complacência e contra a qual se deve lutar sem tréguas. Cabe aos governos implementarem medidas de combate à exploração esclavagista nos seus territórios, assim como também lhes cabe a responsabilidade de pressionarem outros Estados a tomar medidas. E, já que a escravatura viabiliza economicamente muitos negócios, seria conveniente desenvolver medidas também nesta área. Numa era de globalização económica, com pouco controle sobre a circulação dos investimentos transnacionais, é muito complicado garantir que, através de sucessivos investimentos, o dinheiro não acaba a financiar negócios que estão ligados directa ou indirectamente ao trabalho escravo. Desenvolver meios mais eficazes de controlar esta situação, à imagem do que se procura fazer com a criminalidade financeira ou com o financiamento do terrorismo, e reprimir os responsáveis é um imperativo ao qual nenhum governo se devia furtar.

1 Comments:

At 1:44 da tarde, Blogger Evaristo Ferreira said...

Miguel: Agradeço a discrição que fez sobre uma realidade
que eu não podia comentar, por desconhecer o local e as
condições sociais que permitem semelhante escravatura. O
seu post, ainda que resumido, constitui uma antologia sobre a geografia humana que raramente se vê tratada nos blogues. Estou certo que a discrição feita pelo Miguel é factual, rigorosa e, infelizmente, uma realidade em pleno século XXI. Muito obrigado pelo seu
texto.

 

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