quinta-feira, abril 21, 2005

Mudar pouco

Considere-se, para benefício da argumentação, que Deus representa a Verdade. Não obstante, temos de admitir igualmente que os ensinamentos de Deus são, em qualquer caso, interpretados pelo homem. Assim sendo, a infalibilidade divina está comprometida pela reconhecida falibilidade humana. Negar isto é incorrer numa soberba inaceitável. Por isso, mesmo dentro das religiões se discutiu e se discute a doutrina. A fé tem sido, desde sempre, um assunto sujeito a discussões.
A ICAR é uma organização conservadora na sua essência e optou por escolher para Sumo Pontífice, logicamente, alguém que lhe garante um rumo consentâneo com o seu passado milenar. Não há aqui nada de novo. Se o domínio da ICAR fosse exclusivamente o mundo católico, pouco haveria para comentar. Os problemas começam, precisamente, porque a ICAR extravasa muito o seu mundo e reclama um espaço de intervenção mais abrangente. Em defesa deste intervencionismo conservador, há quem argumente que só adere quem quer, ou que quem o deseja se afasta da Igreja. Mas esquecem-se de referir que a ICAR se imiscui na sociedade para lá dos limites do seu espaço legítimo e que as suas convicções são impostas a muitos não católicos, tal como se pode aferir pelos mais recentes acontecimentos em Timor-Leste.
Bem entendido, dentro dos princípios advogados pela ICAR, não se pode esperar que esta venha a adoptar, facilmente, posições progressistas sobre temas como o aborto, a homossexualidade ou a contracepção. Mas também não podemos ignorar que conservadorismo não é exactamente o mesmo que imutabilidade. Aliás, a ICAR tem mudado ao longo da sua história, tem reagido e tem-se adaptado. De forma lenta, é certo, mas tem-no feito. De resto, a ICAR é apenas uma das actuais fés cristãs e as interpretações bíblicas que defende representam apenas uma das correntes dentro dos primeiros cristianismos. Mas, claro, pensar assim pode ser identificado com o relativismo que Bento XVI tanto critica.
É legítimo, dentro de limites razoáveis, esperar que a ICAR altere as suas posições. Mais concretamente, nem tanto que mude radicalmente de opinião sobre determinados temas, mas, sobretudo, que deixe de querer impor as suas convicções para lá do âmbito do seu corpo de fiéis. Para isso, nem é preciso que mude muito.