A marca ambígua do cavaquismo
A multiplicidade de artigos de opinião, reportagens e debates sobre Cavaco Silva é mais do que a minha sensibilidade política de esquerda consegue suportar. A verdade é que a figura de Cavaco sempre me provocou arrepios. O timbre da voz, a forma paternalista do discurso, a arrogância.
Curiosamente, este recente confronto com a imagem de Cavaco também me traz uma certa melancolia. As minhas primeiras memórias políticas estão-lhe associadas. O acontecimento político mais distante que consigo recordar é o final do seu primeiro governo e a subsequente primeira maioria absoluta. Foi sem dúvida com os governos de Cavaco que começou a despertar e a crescer a minha consciência política. Bom, de facto, não foi com os governos de Cavaco, foi contra eles.
Lembro-me bem desses tempos. Por essa altura costumava partilhar as tardes soalheiras de Lisboa com um ou dois amigos. Íamos descobrindo as melhores esplanadas, os recantos mais pacíficos, o desenho das ruas e dos prédios. Passei longas e pachorrentas horas na esplanada da Graça a ver o sol desaparecer lentamente a Oeste. Recordo os jantares adolescentes num quinto andar do cruzamento da Av. de Roma com a João XXI. Verdadeiros aperitivos para os sabores da noite que se seguia. Tudo acompanhado pela banda sonora do Independente, apostado em constituir-se na referência dos que não disfarçavam a alegria com os estertores semanais do executivo.
Desta forma estranha (tudo é estranho na adolescência), enquanto o cavaquismo agonizava no exagero do betão, na arrogância autista e na prepotência política, revelando um país de conveniências e de atropelos, pouco a pouco eu ia também aprendendo a crescer e a gostar de uma cidade. São realmente curiosas as associações com que a memória nos brinda.
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