terça-feira, março 23, 2004

A Paixão do Cristo

O filme de Mel Gibson peca por ser demasiado explícito e redutor. Todo o filme se centra no sofrimento de Jesus. Sobretudo no sofrimento físico. O filme está tão centrado neste aspecto que descura todas as outras componentes. O sofrimento psicológico não é, de todo, abordado. A dúvida e a conflitualidade interna são superficialmente tratadas, aparecendo como pedaços soltos dentro do filme, sem qualquer articulação que se possa discernir. O pouco empenho na definição das personagens culmina no tratamento dado aos soldados romanos e aos sacerdotes que não passam de confrangedoras caricaturas de personagens.
A forma que Gibson encontra para abordar o supremo sacrifício de Jesus é a explicitação das sevícias a que este é sujeito. A exposição da violência passa a ser o veículo principal para a mensagem. A exploração do sangue, das feridas abertas, da carne martirizada, das imagens em velocidade lenta cumpre, através do choque visual e emotivo, o propósito básico de exemplificar a dor. Mas representa um recurso elementar, pouco imaginativo, de o fazer. A capacidade para suportar tanta violência depende do estômago e do bom gosto de cada um.
Assim, resulta que temos alcançada uma certa eficácia na demonstração do enorme sofrimento físico vivido naquela situação. Mas, quanto ao sofrimento específico de Jesus Cristo, ainda faltaram alguns passos para realçar essa singularidade. O sofrimento de Jesus Cristo é, neste filme, um sofrimento muito humano. O que não teria mal nenhum, muito pelo contrário, não fosse o facto de não parecer ter sido essa a ideia inicial do filme. O Cristo redentor acaba eclipsado por Jesus, o homem. A experiência religiosa, espiritual, mística, o que se quiser chamar, acaba relegada para segundo plano. No final sobra o sangue que não parece muito diferente daquele que podemos ver nos telejornais todos os dias.
O filme de Mel Gibson representa certamente uma forma diferente de mostrar Jesus Cristo. Poderá mesmo abrir portas para formas ainda mais inovadoras de o fazer. Mas não se assume como uma experiência cinematográfica particularmente bem conseguida. À saída da sala de cinema não se fala tanto do que o filme é, mas antes do que ele não é e poderia ter sido.