quinta-feira, julho 15, 2004

Ainda Ferro Rodrigues

A liderança de Ferro Rodrigues foi mais importante para o sistema político português e para o PS do que é reconhecido. A linha ideológica da direcção do PS aproximou-se daquilo que considero ser o campo em que um partido com as características do PS se deve situar. Com FR, o PS ocupou claramente o campo da esquerda. Evidentemente, esta colocação desagradou a muita gente, dentro e fora do partido. Não faltou quem vaticinasse resultados desastrosos que nunca se concretizaram. Pelo contrário, quer as sondagens quer os resultados eleitorais desmentiram estas teorias. No entanto, o centro continuou a ser o objectivo eleitoral dos que não se reviram numa orientação de esquerda. Em última análise, se o PS e o PSD decidirem competir simultaneamente pelo centro perde-se diversidade no panorama político nacional. Além disso, o eleitorado do centro é tendencialmente desideologizado e consequentemente volátil. Ter um ou, ainda pior, os dois maiores partidos a focar-se no centro não contribui em nada para a pedagogia política do eleitorado e aliena uma margem de sensibilidades políticas enorme.
Fica ainda por demonstrar a capacidade de concretizar as políticas de esquerda que se prometiam. Depois da década cavaquista e dos seis anos de governo liderado por António Guterres, que estava longe de poder ser considerado a ala esquerda do PS, gora-se assim uma oportunidade que, embora mal quista e menosprezada, reunia reais condições de estabelecer uma governação bastante diferente do que foi a última experiência socialista.
Tão atacada como a linha ideológica de FR foi a sua linha política. A este facto não foi alheio o desenvolvimento do processo Casa Pia. Nos diversos episódios que envolveram FR, uma boa parte deles não tem outra classificação que não seja a de canalhice. Ainda me espanto com a facilidade com que se diz que FR deixou colar o PS ao caso Casa Pia. Como se a colagem não tivesse sido feita generalizadamente em órgãos de comunicação social mais preocupados em garantir audiências do que em permanecer fiéis à deontologia da profissão. Ou como se as insinuações de pedofilia constituíssem uma acusação da qual seja possível encontrar uma saída política. Uma acusação ao carácter, ao contrário das acusações políticas, não admite diferentes perspectivas de enquadramento. FR sabia que só combatendo veementemente essas insinuações poderia resistir como personalidade política. Mas, ainda mais importante do que isso, o que estava e está ainda em causa é um património democrático que se vê posto em causa quando se tem a sensação que o boato calunioso é suficiente para fazer rolar cabeças. O correcto funcionamento das instituições democráticas não pode ser cúmplice deste tipo de procedimentos. Por isso era tão importante que FR sobrevivesse politicamente ao lamaçal em que o quiseram ver envolvido. Para provar que os princípios podem e devem prevalecer.
A resistência quase estóica de FR perde um pouco com a sua saída. Se FR tinha que deixar a liderança do PS que o fizesse como vontade expressa dos militantes do partido e não em função dos interesses de uma comunicação social ávida de pseudo-acontecimentos ou dos interesses obscuros que sempre pareceram movimentar-se à sua volta para atingir esse fim. Pela minha parte, gostava de ter visto FR resistir pelo menos até ao congresso, obrigando os seus adversários a deixar as sombras. Qualquer que fosse o resultado, sobraria uma valiosa lição de como se deve estar na política. Com frontalidade, com princípios, com abnegação. Na verdade, a lição está lá, mas assim é mais difícil torná-la perceptível.

2 Comments:

At 10:32 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Sem qualquer dúvida, Miguel
O abandono da área de esquerda moderada para promover o combate ao centro, só pode resultar em desastre total numa altura em que só a extrema esquerda não está em desagregação.
Para além do mais, temos de voltar a olhar para a governação como uma gestora de espectativas e das parcas economias.
Os modernos (modernaços) estão convencidos que isto da política foi feita e inventada para brilharem. Talvez o problema de em Portugal não haver uma indústria cinematográfica importante onde tenham oportunidades como estrelas. Como o cinema português continua a ser tão mau, qualquer artista, em qualquer novela, pode passar a ídolo. Principalmente se for o Action Men.
É como dizes, Miguel. Estaremos cá para ver se Ferro tinha ou não razão.
Abraço
Luis Tito
www.tugir.blogspot.com

 
At 10:32 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Sem qualquer dúvida, Miguel
O abandono da área de esquerda moderada para promover o combate ao centro, só pode resultar em desastre total numa altura em que só a extrema esquerda não está em desagregação.
Para além do mais, temos de voltar a olhar para a governação como uma gestora de espectativas e das parcas economias.
Os modernos (modernaços) estão convencidos que isto da política foi feita e inventada para brilharem. Talvez o problema de em Portugal não haver uma indústria cinematográfica importante onde tenham oportunidades como estrelas. Como o cinema português continua a ser tão mau, qualquer artista, em qualquer novela, pode passar a ídolo. Principalmente se for o Action Men.
É como dizes, Miguel. Estaremos cá para ver se Ferro tinha ou não razão.
Abraço
Luis Tito
www.tugir.blogspot.com

 

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