terça-feira, novembro 09, 2004

A "naturalidade" no casamento

Continuo a surpreender-me com a facilidade com que vinga o argumento da “naturalidade” nas relações conjugais. Foi, mais uma vez, o caso do artigo do Prof. Mário Pinto nesta segunda-feira. Entre outras ideias, defende o Prof. Mário Pinto que “deve ainda hoje valer, no novo contexto da cultura e da civilização actuais”, um sentido essencial de protecção da maternidade associado ao matrimónio. Desta forma, o casamento tem uma função “natural” procriadora, obviamente inacessível aos homossexuais, pelo que a equiparação dos casamentos homo e heterossexuais revelaria uma clara assimetria, já que só os segundos podem resultar em procriação. Mais ainda, Mário Pinto afirma que “se a sociedade se organizasse agora na base do casamento homossexual, só duraria a presente geração”.
Todo o raciocínio deste ponto do artigo de Mário Pinto está tão eivado de preconceitos, ideias feitas e incorrecções que é difícil começar a criticá-lo. As opções são tantas que dificultam a concentração de esforços.
A ideia de força do seu texto é o carácter “natural” da procriação no matrimónio. Esta ideia parte de um pressuposto de fundamentalismo biológico do relacionamento humano. Ainda que admitindo que o casamento cumpriu historicamente esta função (o que, já de si, pode ser muito discutível), ao contrário do que Mário Pinto afirma, já não faz sentido querer impor socialmente esta concepção. No “contexto da cultura e da civilização actuais” (das nossas, supõe-se), nem a reprodução sexual tem de estar necessariamente ligada ao casamento nem este tem de estar relacionado com aquela. Podemos mesmo dizer que existe uma independência considerável entre um e outra.
Os significados atribuídos ao casamento e à reprodução, felizmente, como todas as coisas, vão sofrendo alterações à medida que as sociedades se transformam culturalmente. O Homem é um ser cultural, pelo que os significados simbólicos se vão alterando ao longo dos tempos e podem ser reinterpretados pelas novas gerações. Já passámos a fase das pulsões e determinismos biológicos há vários milhares de anos. O casamento, enquanto união entre duas pessoas, hoje em dia, passa pelo menos tanto pelo desejo de comunhão de duas vidas como pelo desejo de procriação. É verdade que ainda se casa para que o fruto de uma gravidez não planeada veja a luz do dia no seio de uma relação matrimonial. Mas este facto define muito mais o casamento como instituição legitimadora da procriação do que a procriação como instituição legitimadora do casamento.
Mesmo a visão da sexualidade evoluiu muito para lá do fenómeno reprodutivo. Das inúmeras relações sexuais entre pessoas de sexo oposto, seria interessante poder contabilizar quantas têm como objectivo específico a procriação e quantas têm como objectivo a partilha de prazer. Assim, o casamento não tem nenhuma característica “natural” inerente. Tem, sim, uma profusão de características culturais que não só mudaram ao longo dos tempos, como divergem de sociedade para sociedade. Esta diversidade, por si só, é suficiente para desfazer o mito da “naturalidade” do que quer que seja, mas Mário Pinto preferiu, convenientemente, ignorá-la.
Querer reduzir a essência do casamento à função procriadora é perfeitamente castrador da liberdade humana de redefinição cultural e constitui uma negação tácita da legitimidade dos diversos estilos de vida. Não tem, por isso, que existir uma assimetria entre casamento homossexual e casamento heterossexual, na medida em que a procriação não é o objectivo do casamento, muito menos o seu “fim natural”. Os homossexuais estão tão limitados no campo da procriação como os casais heterossexuais estéreis e não se pretende certamente questionar a legitimidade do casamento neste último caso.
Em campos donde não resulta prejuízo quer para as partes envolvidas, quer para terceiros, o Estado deve abdicar de envolver-se condicionando as opções de cada um. Faz tanto sentido impedir o casamento entre duas pessoas como obrigá-las a contrair matrimónio contra a sua vontade. O casamento entre pessoas do mesmo sexo não ameaça nada nem ninguém, nem rompe com os pressupostos “naturais” porque estes pura e simplesmente não existem, não passando de criações sociais. Mas ainda que rompesse não haveria muito a fazer pois, sem prejuízo de terceiros, trata-se de um direito inalienável à diferença a à auto-determinação individual. Se algumas confissões religiosas não quiserem reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo é algo que devem resolver no seu seio. Mas como deve existir uma separação de facto entre o Estado e a moral religiosa, nenhuma confissão pode querer impor a sua visão particular da realidade ao conjunto da sociedade. E têm que se habituar a isso, de uma vez por todas.

O Descrédito também comenta este texto.

2 Comments:

At 2:13 da tarde, Blogger cparis said...

caro miguel,

li o seu texto todo e substitui na sua argumentação "casamento com pessoas do mesmo sexo" por "casamento poligâmico" e deu-me o mesmo...

suponho então que seja a favor da poligamia?
caso seja contra indique-me porquê...

 
At 5:05 da tarde, Blogger Miguel Silva said...

Caro César,
Como julgo que fica claro no meu texto, considero tão "natural" a monogamia como a poligamia. De resto, já ouvi defender a poligamia com uma argumentação precisamente baseada em determinadas teorias biológicas (biologistas, diria eu) que conferem ao Homem, enquanto animal, uma predisposição para a mesma. Mas, como também referi, já ultrapassámos a dependência da biologia em todos os campos que são moldados pela cultura. Assim, na realidade, o relacionamento conjugal é uma construção social, sofrendo variações de sociedade para sociedade.
Não me julgo competente para definir a forma como cada sociedade se deve organizar, mas, caso não seja possível comprovar que da poligamia resulta prejuízo para alguém, não tenho como ser contra.
Permito-me devolver a pergunta: gostaria que me demonstrassem os resultados perniciosos do casamento homossexual. Gostaria de saber de que forma este se constitui como uma ameaça à sociedade? Se possível, sem recurso à argumentação do carácter "natural" da relação heterossexual ou da legitimidade histórica desta. Gostaria que me referissem casos práticos: "se se aceitar o casamento homossexual como uma das variantes de relacionamento, as consequências nefastas serão X e Y".
Um abraço
Miguel

 

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