quarta-feira, março 09, 2005

Uma brincadeira muito séria

O episódio do envio da fotografia de Freitas do Amaral para a sede do PS foi, por muitos, comparado aos métodos estalinistas. Há semelhanças, é verdade. Mas a comparação corre o risco de perder poder analítico por facilmente se converter numa caricatura. Comparações desta natureza correm sempre esse risco. Não só existe uma certa dose de banalização dos acontecimentos mais marcantes – neste caso o regime de Estaline – como também se verifica que, pela diferença de magnitude dos acontecimentos, a própria comparação é levada menos a sério.
Os regimes mais célebres por recorrerem à manipulação da História e à propaganda – o comunismo e o fascismo – fizeram-no com objectivos bem definidos. Em causa estava um branqueamento e uma purificação do passado. Sobretudo, para além de uma visão do mundo que interessava difundir, tornavam-se necessárias formas complementares de legitimação desses regimes.
O que se passou agora dentro do PP é parecido, mas não se baseia nos mesmos pressupostos. Desde logo, o comportamento da direcção do PP parece estar mais ligado a uma vingançazinha, própria de quem está ressabiado, do que a um imperativo ideológico que é preciso manter impoluto. A democracia cristã que Portas professa não é tão ideologicamente apurada que possa ser equiparada ao comunismo ou ao fascismo. Estes, nas suas necessidades de legitimação, reprimiam as ameaças à integridade dos seus programas (muito embora a violência do fascismo fosse, ela própria, legitimadora da ideologia, senão mesmo um fim ideológico). A manipulação histórica que levaram a cabo, feita de forma mais ou menos encapotada, teve como objectivos a desacreditação dos adversários e o reforço da superioridade do ideal professado.
As diferenças começam precisamente aqui. Não só não existe uma desacreditação de Freitas do Amaral, nem um reforço dos ideais da democracia cristã, como o PP não teve pejo em anunciar publicamente que retirava a fotografia das suas paredes. Como manipulação é fraco, tendo implicações possivelmente a médio prazo, quando as personalidades políticas de todos os envolvidos pertencerem de tal forma ao passado que a memória não as alcance facilmente. Contudo, esta “garotice”, tal como foi apelidada, denota uma capacidade de mexer na História que não deve ser menosprezada, tanto mais que já existem antecedentes. Para quem tomou a decisão, a História não merece respeito. Pode-se bulir com ela, mesmo que seja para satisfazer caprichos pessoais mal disfarçados de brincadeiras de criança.
De certa maneira, as manipulações do comunismo e do fascismo obedeciam a uma lógica identificável, o que facilita a reposição da verdade. As atitudes aparentemente irreflectidas ou imaturas dos dirigentes do PP estão mais perto dos estados de humor individuais. Admitindo que passam despercebidas, podem ser muito mais difíceis de identificar e rectificar, na medida em que não dependem, necessariamente, de uma lógica coerente.
A amplitude das manipulações dos regimes referidos é incomensuravelmente superior a este mau ensaio do PP. No entanto, este último não deixa de ser um indicador perigoso. Mais ainda, e assumindo o que esta afirmação tem de especulativo, quando sabemos que foram pessoas ligadas ao PP e à actual liderança que tutelaram áreas tão sensíveis como a Justiça ou os Serviços de Informação da Defesa nos últimos anos. Evidentemente, uma coisa não implica forçosamente a outra. Mas é mais do que suficiente para assustar.

1 Comments:

At 12:46 da tarde, Blogger cparis said...

o quadro é um fait divers de mau gosto. o pior é que impede que se discuta o que realmente interessa: Freitas do Amaral como Ministro dos Negócios Estrangeiros é uma péssima escolha para Portugal.

 

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