Responsabilidades acrescidas
A justiça não é cega. Nem deve sê-lo. Paradoxalmente, não só não é sociologicamente cega, como não é judicialmente cega. Quer isto dizer que, no primeiro caso, o sistema judicial funciona melhor para uns do que para outros. Aceder ao sistema de justiça não é fácil, exigindo tempo e dinheiro em doses consideráveis, que muita gente não dispõe. Não é por acaso que surgem casos de entidades capazes de avançar para a litigação em tribunal de forma quase crónica. Além disso, o sistema judicial, embora não devesse, trabalha com representações estereotipadas da culpa e da responsabilidade. Um dos casos mais paradigmáticos é o da aplicação da pena capital nos EUA. Pelo mesmo crime, um arguido afro-americano tem muito mais probabilidades de ser sentenciado à pena de morte do que um arguido de qualquer outra etnia. Não é difícil aceitar que estes fenómenos se afastam da essência da justiça.
O grande paradoxo judicial reside no facto de a justiça não poder ser cega. Apesar dos desvios acima mencionados, a visão é inerente ao sentido de justiça. De outra forma, a figura do juiz seria praticamente dispensável. O juiz está lá para aferir, controlar e julgar. O seu papel também consiste em adoptar uma perspectiva adequada aos casos julgados. Se a aplicação das penas não for proporcional à especificidade do caso, não se pode dizer que se esteja perante o exercício da justiça.
É evidente que tanto o primeiro caso como o segundo são ameaças graves ao sentido e à percepção da justiça. Qualquer um deles origina um desvio inaceitável no curso judicial. Deste desvio resultam duas consequências importantes. A primeira prende-se com o processo específico a ser julgado. O desvio originado vai prejudicar pessoas ou entidades concretas, continuando a lesá-las para além do motivo que as levou a recorrer aos tribunais. A segunda consequência, não menos importante, é que a justiça é das instituições que mais precisa de ser credível para a manutenção do seu estatuto. Com a monitorização proporcionada pela comunicação social, nomeadamente através dos casos mais mediáticos ou mais exóticos, o cidadão tem acesso a um vislumbre dos meandros de uma das mais opacas instituições modernas. Daqui nascem percepções sobre a forma de funcionamento que facilmente podem dar lugar a sentimentos de descrença (se esses sentimentos se baseiam numa perspectiva distorcida da realidade é conversa para outro post).
A correcta aplicação da justiça é um dos pilares fundamentais do Estado de direito democrático. A perda de confiança nos tribunais implica uma perda de confiança no próprio Estado. Os agentes envolvidos no sector da justiça contribuem decisivamente, como poucos, para o auto-conceito de uma sociedade, logo, as suas más acções repercutem-se de forma extremamente negativa no seu seio. Qualquer sociedade com um sistema de justiça fragilizado está, ela mesma, fragilizada. De uma forma muito clara, é impossível pedir o respeito pelas regras se o controle e as sanções são exercidos de modo deficitário ou arbitrário. Não se consegue fundar um projecto de futuro para uma sociedade baseado nestas premissas.
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