segunda-feira, outubro 20, 2003

...e depois acordei. (III)

Posto isto, vamos ao caso em concreto. As transcrições das escutas que supostamente constam do processo contra Paulo Pedroso a que a SIC teve acesso merecem muita reflexão. Sobretudo a dois níveis: o da fuga de informação por parte de quem fez chegar esse material à estação de televisão e a forma como esta fez a sua divulgação.
No primeiro caso, não podemos esquecer que ou se defende a relevância do segredo de justiça para o correcto procedimento judicial, ou se descarta de uma vez por todas este conceito. Qualquer que seja a posição adoptada, convém que se comecem a demarcar os campos e os opositores para se iniciar uma reflexão profunda sobre o segredo de justiça, tão urgente e pertinente como a reflexão sobre a aplicação da prisão preventiva. E que não se venha dizer que só agora é que se fala disto ou daquilo porque está envolvido este ou aquele. Com esse argumento não se começaria a reflectir sobre nada. Se existe agora preocupação suficiente sobre os temas, que se aproveite. O que não se pode é continuar a tolerar esta solução intermédia, em que toda a gente se está a borrifar para o segredo de justiça, mesmo que a informação divulgada não venha suprir nenhuma necessidade informativa real e apenas se preste à exploração do populismo.
A fuga de informação sobre as transcrições das escutas é muito grave. Como são todas as outras quebras do segredo de justiça. Afectam de forma profunda a (pouca) confiança que a justiça vai merecendo em Portugal. Pactuar paulatinamente com esta realidade compromete o presente e o futuro da nossa justiça e da nossa democracia.
No segundo caso, a forma que a SIC escolheu para divulgar a informação a que teve acesso pautou-se por uma enorme falta de profissionalismo e de sentido de dever. O que a SIC divulgou foram meros excertos de diálogos, totalmente desinseridos do contexto. Nenhuma das referências às conversas tem mais que duas ou três frases. Muitas limitam-se a um excerto de uma frase. Não é possível compreender que a estação televisiva tenha procedido a uma edição tão cirúrgica das transcrições a que teve acesso. Se foi esse o caso levantam-se, pelo menos, duas perguntas: o que foi dito no resto das conversas? Por que razão se procedeu a esta opção de edição? Se, pelo contrário, foi a este conteúdo tão espartano que a SIC teve acesso também não podemos deixar de interrogar se em momento algum os profissionais envolvidos pararam para se perguntar no que se estavam a meter. Faz sentido emitir aqueles conteúdos sem qualquer análise crítica? Faz sentido emitir aqueles conteúdos, de todo? Qual é o serviço que está a ser prestado neste caso? Existe realmente um direito à informação sobre conversas privadas e que estão protegidas pelo segredo de justiça? A SIC preferiu ignorar estes aspectos e centrar-se no furo jornalístico, nas audiências. Tendo a oportunidade de escolher, preferiu indubitavelmente bater no fundo em nome do share. Justiça lhe seja feita, conseguiu.
Através das transcrições divulgadas pela SIC, em momento algum se pode concluir que algum dos envolvidos está a pressionar a justiça. Ao contrário do que Pacheco Pereira afirmou, do que foi divulgado não se pode concluir absolutamente nada. Para se extrapolar abusivamente que existiram pressões sobre a justiça teria que se admitir que o Presidente da República, o Procurador-Geral, o Procurador e o juiz encarregues do processo estariam na disposição de se colocar ao serviço das eventuais pressões exercidas. Alguém quer assumir abertamente esta hipótese? Para arrumar de vez com a democracia para as próximas décadas...