sexta-feira, outubro 03, 2003

Sobre o aborto II

Voltando ao debate sobre o aborto acrescento alguns esclarecimentos sobre o referendo de 1998.
Resumidamente, a abstenção pode explicar-se, claro, pelo grau de interesse que a questão referendada suscita. Mas também pela “certeza” do resultado, pelo apoio de alguma(s) força(s) política(s) nesse sentido e pela divergência entre a indicação de voto de um partido e o sentimento da maioria do seu eleitorado (neste caso também serão importantes as divisões dentro do próprio partido acerca do assunto).
Concretamente, e segundo estudos elaborados a esse respeito, o resultado que se verificou e a elevada abstenção que lhe esteve associada, influenciando inegavelmente o resultado, dependeram de diversos factores.
Contribuíram para esse resultado, por exemplo, as divisões internas no PS, que na altura se encontrava no governo e era o partido mais votado. Igualmente importante foi a maior mobilização dos partidos de direita (PSD e CDS/PP), quer se tenha verificado por razões ideológicas, quer se tenha verificado por razões eleitorais. Convém não esquecer que 1999 foi ano de eleições e que os referendos também serviram de aferição de intenção de voto do eleitorado. Desta forma, os partidos de direita registaram menores taxas de abstenção. Outro factor de grande importância foi a mobilização da Igreja contra o aborto. O peso desta instituição na sociedade portuguesa é muito grande e de maneira nenhuma se poderá negligenciá-lo. Fazendo a ligação do poder da Igreja em sectores tradicionalmente associados à direita, facilmente se concluirá que, mais uma vez, foi este lado da contenda que registou menos razões para a abstenção. Finalmente, as previsões de uma vitória certa para o “Sim” tiveram um efeito de desmobilização dos seus apoiantes, registando-se o efeito inverso no campo oposto.
Se o referendo se repetisse hoje os resultados seriam os mesmos? De certeza que não. Depois do que ficou dito em cima, não se pode esperar que a actual conjuntura política repetisse os passos dados no passado. É de crer que o número de eleitores mais sensibilizados para votar fosse maior. Sem que isto queira, obviamente, dizer que a votação se desse no sentido contrário. Mas estou convencido que, sendo certo que a abstenção se verificou sobretudo entre os apoiantes do sim, uma repetição, por estes dias, traria, em princípio, mais vantagens para estes.
Quanto à clarificação das expressões utilizadas no Barnabé que a Briosa me pede, julgo que será muito mais correcto pedi-las ao autor. Do mesmo modo, recordo que a re-introdução da questão do referendo foi proposta e não aqui, por isso reservo a minha posição a esse respeito para outra altura.
Por último, claramente que não defendi o direito à vida somente a partir de um determinado nível de qualidade. Limitei-me a polemizar sobre o facto de ser impossível separar o aborto das causas e consequências que lhe estão associadas. O aborto, para além de uma questão de ética ou moral, é também uma questão de saúde pública e de dignidade humana. Não se pode iludir este facto. É uma realidade que deve ser discutida em todas as suas componentes, mesmo que isso implique ir para além das convicções de cada um para compreender o fenómeno. Com o actual cenário também se perdem vidas. Muitas vezes duas de uma só vez. É esta realidade e este contra-senso que gostaria de ver alterados.

Para uma visão mais completa sobre o tema da abstenção nos referendos de 1998, consultar na Revista Análise Social, nº 158/159 o estudo de André Freire e Michael Baum.