terça-feira, novembro 25, 2003

Outra vez o aborto

Através do Glória Fácil (onde se pode encontrar o texto completo) e do Bloguitica acedo ao artigo de Vasco Rato sobre a descriminalização do aborto. O Paulo Gorjão prefere centrar-se no penúltimo parágrafo, onde Vasco Rato aborda a questão do começo da vida. O meu foco de análise centra-se, tal como o Ivan Nunes, no último parágrafo. Resumidamente, Vasco Rato propõe descriminalizar o aborto, desde que este só se possa realizar em clínicas privadas e inteiramente custeado pelos utentes. Esta proposta é feita, supostamente, em nome da humanização de uma lei hipócrita violada impunemente.
Na minha opinião, é este o parágrafo essencial da reflexão de Vasco Rato. O que Vasco Rato propõe, sem o afirmar claramente, é que o aborto só esteja ao alcance de quem tenha meios financeiros para o pagar. Acontece que, de uma forma geral, quem tem meios para pagar um aborto numa clínica já o pode fazer legal (no estrangeiro) ou clandestinamente (em Portugal). É, sobretudo, para os menos favorecidos que a descriminalização do aborto faz mais sentido. Porque é ao possibilitar o acesso ao Serviço Nacional de Saúde das camadas mais carenciadas que se combate os abortos de vão de escada, feitos em condições precárias e atentatórias da dignidade e da saúde dos que a eles recorrem.
Vasco Rato tem razão quando afirma que o aborto passa por uma decisão (certamente terrível para quem a toma) individual. Por isso acredito que faz muito mais sentido que a decisão da descriminalização passe preferencialmente pela Assembleia e não pelo referendo. Julgo que é mais frutuoso chamar a sociedade a pronunciar-se sobre o caminho da acção política do que sobre o comportamento dos cidadãos que a integram.
Compreendo que o aborto incomode a consciência de muita gente. Compreendo que se discorde veementemente da sua descriminalização. No entanto, acredito que descriminalizar o aborto não fará aumentar o número de ocorrências. Quem quer mesmo fazer um aborto arranja maneira (melhor ou pior) de o fazer. Assim como quem não o quer fazer nesta conjuntura, certamente continuará a não o fazer noutro enquadramento legal. A descriminalização do aborto, e a sua subsequente integração no SNS, tem como um dos seus principais benefícios possibilitar condições médicas que ajudem a evitar os verdadeiros crimes de saúde pública a que têm de se sujeitar aqueles que tomam esta decisão. Para mais, um acompanhamento médico claramente assumido coordenado com uma assistência social eficaz poderiam ajudar a orientar e canalizar os utentes para outras soluções (muito embora reconheça a tripla dificuldade desta medida: esperar o correcto funcionamento não de um mas sim de dois serviços, esperar uma coordenação eficaz dos respectivos serviços, esperar que impere o bom senso na altura do aconselhamento e da orientação dos utentes).
Já não tem qualquer fundamento querer transformar a decisão individual de abortar num corte relacional com o Estado em geral e com o SNS em particular, como propõe Vasco Rato. As teses individualistas e liberais levadas ao extremo conduzem a um empobrecimento dos laços sociais. Remetem para uma concepção da sociedade como um aglomerado de vontades individuais, distintas e independentes em que cada um está entregue a si próprio. Não partilho esta concepção da sociedade. Não considero esta concepção nem real nem viável.
Por último, Vasco Rato não indica qual é a linha que separa as decisões individuais que cabem dentro da alçada do suporte Estatal das que não cabem. Devemos, por exemplo, defender o fim da prestação de cuidados no SNS aos fumadores com cancro de pulmão? Ou aos doentes de SIDA? Devemos entregar o SNS aos privados sem levar em linha de conta o número de portugueses que não tem capacidade financeira de aceder aos cuidados de saúde nas entidades privadas? Devemos promover a quebra das ligações entre os cidadãos e o Estado lenta e inexoravelmente? Onde é que está a humanidade destas medidas? Onde é que estaria a humanidade dessa sociedade?