terça-feira, dezembro 30, 2003

Mudar a mentalidade dos condutores

Nestes dias que passaram, mais alguns portugueses perderam a vida na estrada. Como acontece durante todo o ano, aproximadamente a uma média de quatro mortes por dia. Mudar estas tristes estatísticas passa por muitos aspectos. Passa por medidas que cabem em primeiro lugar às entidades competentes.
Mas existem medidas que dependem sobretudo dos condutores. Mudar a mentalidade dos condutores tem de ser uma prioridade no combate à sinistralidade. Por muito boas que sejam as normas, se não forem respeitadas não resultam em qualquer melhoria.
O desrespeito compulsivo pelas regras elementares de circulação nas estradas tem vários factores explicativos. Reunidos sob a capa mais ou menos obscura da falta de civismo, podemos encontrar, entre outros, o excesso de velocidade, as manobras perigosas, a falta de atenção, o mau cálculo dos riscos.
Uma boa parte destes factores está relacionada com a incapacidade para perceber e interiorizar o outro. Mais do que uma interiorização ineficaz das regras, o que está aqui em causa é uma interiorização ineficaz do outro. É a incapacidade para pensar, simultaneamente, o próprio comportamento e o comportamento de terceiros, numa relação de interdependência. Apesar de só muito raramente se registarem situações de interacção face-a-face durante a condução, a acção de um condutor tem repercussões nas acções subsequentes de muitos outros. É sobretudo a incapacidade de ter esta ideia presente durante a maior parte do período de condução que caracteriza a incapacidade de pensar o outro. Sejamos claros, a esmagadora maioria dos condutores será capaz de reconhecer esta interdependência, quando questionados sobre isso. Mas transportá-la para a estrada, como manifestação concreta e palpável dessa abstracção que é pensar o outro, é uma coisa muito diferente.
Esta característica, que julgo dominante na condução, tem uma outra vertente igualmente nefasta. A incapacidade de pensar o outro reflecte-se também na incapacidade de pensar os papéis sociais a desempenhar por cada um de nós nas diversas situações do quotidiano. Enquadrando este fenómeno na condução, resulta que, mesmo quando o condutor pensa o seu comportamento e o comportamento de terceiros, muito provavelmente, não será capaz de os perceber. Ou seja, o condutor não assume o papel que deve assumir enquanto condutor, trocando-o por outro papel qualquer que passa a desempenhar ao volante, nem percebe o papel que os outros estão a assumir.

A mudança de mentalidade começa em cada um de nós. Passa pelo respeito pelas regras. Mas passa também, e este aspecto é muito importante, pela sanção social negativa ao desrespeito pelas regras. Há uns anos conheci um sueco que se encontrava a trabalhar em Portugal. Nas várias conversas que tivemos, algumas foram sobre as diferenças de comportamento ao volante entre suecos e portugueses. Dizia-me ele que era impensável que algum dos seus amigos dissesse que tinha demorado somente X horas em determinado percurso de auto-estrada. Se existe uma velocidade máxima estipulada, o tempo de viagem, salvo demoras imprevistas, é sempre sensivelmente o mesmo. Simplesmente não é tema de conversa.
Se alguns de nós fossem juntando ao respeito pelas regras a manifestação pública de desagrado com o desrespeito das mesmas, estaríamos já a dar passos importantes para alterar a mentalidade e, consequentemente, o comportamento dos condutores portugueses.