sexta-feira, março 26, 2004

O poder das interrogações

José Saramago chamou a atenção, nos últimos dias, para a subserviência dos poderes políticos em relação aos poderes económicos. No editorial de hoje no Público, José Manuel Fernandes vem fazer o democrático exercício da indignação contra os perigosos ataques do octogenário escritor. Ora, Saramago toca em dois pontos absolutamente óbvios da realidade actual: a preponderância da economia e a falta de capacidade do sector político para recuperar dessa perda de influência. Mais ainda quando a quebra de influência do poder político também se nota no progressivo afastamento dos eleitores.
O poderio económico é notório. A proliferação de organismos de dimensão nacional ou supra-nacional dedicados à (des)regulação económica é por demais evidente, não tendo qualquer comparação com a tibieza dos organismos de natureza política. A capacidade que organismos como o Banco Mundial, o FMI ou a OMC têm de impor as suas decisões, por exemplo, supera largamente a capacidade decisória e operativa de uma ONU. Ao mesmo tempo, os grupos económico-financeiros operam transnacionalmente sem entraves, chegando a deter mais poder que os próprios Estados onde operam. As consequências desta desproporção de influência têm sido negligenciadas, apesar da sua gravidade.
Por outro lado, também é notório o crescente desinteresse dos eleitores pela realidade política. As justificações para este facto não são simples. No entanto, é inegável que colocam em causa muitos conceitos que são dados como garantidos pelas alas mais conservadoras do sector político. Negar a pertinência deste debate é querer fugir a um problema central das sociedades contemporâneas. E, confesso, não me custa nada ver discutido o sistema democrático, o sistema eleitoral e o sistema partidário. Não me custa ver questionado o que está bem e o que está mal. A sensação de que já tudo foi pensado ou discutido costuma ser um mau sintoma democrático. E a perspectiva de estagnação no processo de desenvolvimento da democracia e dos sistemas participativos é assustadora. Por isso, é realmente importante que contributos para reflectir mais profundamente sobre o actual estado das democracias ocidentais não sejam menosprezados e muito menos ignorados.
É claro que é mais gratificante e enriquecedor apresentar propostas concretas de alternativa aos problemas diagnosticados. Mas questionar os fundamentos de uma determinada realidade sem apresentar uma alternativa não deixa de ser inteiramente legítimo. Se uma pessoa só puder colocar questões quando já possuir as respostas, estaremos a negligenciar uma parte muito significativa dos mecanismos de reflexão que as sociedades possuem.