segunda-feira, março 29, 2004

Um desespero de país

Tenho, por defeito ou por virtude, uma enorme predisposição à tolerância perante as coisas que não domino. Não possuindo conhecimentos profundos sobre determinadas áreas, ou sobre determinadas situações em concreto, adopto, por princípio, uma posição mais resguardada e tolerante perante todas as partes envolvidas. Esforço-me, não sei se com sucesso, para não partir com preconceitos que toldem uma perspectiva pluralista e relativista das coisas. Cada caso é um caso. Os julgamentos são feitos perante o conhecimento que se vai obtendo, tantas vezes incompleto ou impreciso. Por isso, julgo que reconhecer o engano é um exercício não só de honestidade, mas também de racionalidade.
Os trágicos acontecimentos narrados por João Tilly são, muito provavelmente, do mais triste e desesperante que já li num blogue. Nunca parece haver palavras suficientemente adequadas nestas ocasiões.
Os comportamentos que lá estão relatados, independentemente da situação clínica que vier a ser apurada, constituem um insulto aos utentes do SNS, senão mesmo ao país. É certo que estruturas com a natureza e a dimensão de um hospital são extremamente susceptíveis de gerar uma forte impessoalidade nos seus profissionais. É certo que as condições em que os profissionais de saúde exercem a sua profissão estão longe de ser as mais indicadas e podem gerar muita desmotivação. Mas isso não pode explicar tudo. Não pode explicar como é que determinados profissionais atingem o grau de desumanização que já todos tivemos a oportunidade de presenciar num ou noutro momento. Não pode explicar o laxismo, o mau profissionalismo, o desinteresse e a negligência. Não pode. E não se compreende muito bem como é que se continua a pactuar com esta forma de estar na vida, em qualquer profissão que seja, mas sobretudo numa que pode fazer a diferença entre a vida e a morte. Como é que a cultura de irresponsabilidade, incompetência, compadrio e corporativismo continua a vingar, mesmo nos locais que se deveriam manter mais puros? Como é que se continua a deixar este país percorrer as valetas impunemente?
Com este post não se coloca em causa a actuação clínica dos profissionais de saúde envolvidos neste triste caso, muito menos da classe em geral. Não tenho condições, conhecimento ou autoridade para entrar por aí. As entidades competentes têm trabalho para fazer e aos leigos resta aguardar as conclusões. As minhas perguntas ficam-se somente pela parte humana da questão. Não será que o exercício da medicina comporta uma dimensão relacional demasiado delicada para ser descurada? Não é tempo de capacitar os profissionais de sectores críticos, como a saúde, a justiça e a segurança, que a sua actuação se referencia a pessoas em situações delicadas que merecem uma atenção especial? Será pedir demais?

Sobre este assunto, talvez valha a pena ler os posts do Médico Explica Medicina a Intelectuais.