quinta-feira, junho 03, 2004

Fechar as portas

Entre uma garfada ao jantar e um telefonema para começar a combinar férias, passa pela televisão a imagem de Luís Filipe Pereira, visivelmente atrapalhado, enquanto discorre sobre o lugar da mulher nas sociedades modernas. Quase que era possível adivinhar os pensamentos do ministro escondidos pelo sorriso encavacado: “Pensa Luís Filipe, pensa! Vê se dizes qualquer coisa que não pareça assombrosamente machista!”

A ideia de criar quotas de discriminação positiva a favor do sexo masculino na área da medicina não pode causar senão estranheza. Num dos casos em que o acesso está praticamente condicionado à meritocracia, quer fazer-se valer a ideia de que a equidade está em risco. Ora, sendo sem dúvida interessante tentar perceber por que é que determinadas áreas de estudo e de trabalho aparentam despertar maior interesse num grupo do que noutro, o que é fundamental compreender, como a Sociologia e a Antropologia demonstram, é que as “vocações” masculinas e femininas são socialmente influenciadas.
A divisão de tarefas, qualquer que seja o campo considerado, é uma herança cultural da qual, a custo, nos vamos libertando. Assim como o lugar que a mulher ocupa no campo laboral é uma consequência do facto de a verdadeira emancipação só ter chegado bem tarde no século XX. A forma despudorada como ainda se produzem discursos sexistas revela a profundidade do enraizamento cultural do preconceito. Embora se possa constatar com maior frequência que os casais tendem a partilhar mais tarefas, o que possibilita desde logo uma maior liberdade da mulher para se dedicar ao mundo profissional, ainda vigora uma visão social que atribui à mulher determinadas áreas de acção, sendo que o preconceito é consubstanciado por supostas “vocações”, “capacidades”, “feitios”, “apetências naturais”, “limitações biológicas”, etc.
Um outro aspecto revelador da mentalidade que vigora na nossa sociedade prende-se com a ideia de que a maternidade constitui uma desvantagem. Aqui faz todo o sentido aplicar medidas de discriminação positiva que impeçam que a mulher saia prejudicada. Quando a entidade empregadora concentra as suas atenções nos quatro meses que a mulher passa afastada do seu local de trabalho, algo está muito mal. Em primeiro lugar, porque há uma situação clara de preconceito. Em segundo, porque está a ser atacado o direito fundamental à maternidade e à licença de parto. Por último, porque as vistas curtas do preconceito não conseguem entender os benefícios que existem, a todos os níveis, em valorizar as políticas que favoreçam a maternidade e a relação entre pais e filhos. Benefícios que se traduzem em indicadores demográficos, sociais e económicos. Mas também a um nível menos lato, porém igualmente importante, da saúde e equilíbrio do ambiente familiar e até do equilíbrio do ambiente laboral.
Alterar as mentalidades é um processo sempre difícil e moroso. A igualdade de direitos e de deveres não está tão difundida quanto o discurso politicamente correcto pode fazer crer. Estamos, seguramente, a caminhar nesse sentido, mas não tão depressa como por vezes se quer fazer passar. A instauração de medidas de discriminação positiva, não sendo ideal, permite corrigir estes desvios de origem preconceituosa, sendo, para já, um intervencionismo necessário. Querer aplicá-lo ao grupo dominante seria uma perversão total da sua utilidade, sobretudo quando se constata que os argumentos invocados residem na mais bacoca concepção da vida social.

P.S.: Quanto a este assunto ver também o que se escreveu no Avatares e no Blogame Mucho.

3 Comments:

At 5:50 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Estou em total acordo com o que o Miguel escreveu. Por isso mesmo permita que denuncie aqui um caso de discriminação sexual diária que ninguém parece ter vontade de dissecar: porque raio de razão é que os filhos, em caso de divórcio, são entregues às mães, a não ser em situações muito particulares? É ou não um caso de discriminação sexual grosseira?

 
At 5:51 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Peço desculpa, esqueci de me identificar.

carlos a.a. - http://ideias-soltas.weblog.com.pt/

 
At 10:18 da tarde, Blogger Miguel Silva said...

Ora aí está uma questão bem complexa e pertinente. Parece-me que merece uma reflexão séria que pode resultar num ou mais posts.

 

Enviar um comentário

<< Home