terça-feira, setembro 28, 2004

Justicite

Não há qualquer interesse em ver a cara de presumíveis homicidas. Não existe, de facto, nenhuma vantagem em conhecer-lhes as caras, por mais hediondos que sejam os crimes cometidos. Muito menos essa divulgação pode legitimamente fazer parte de uma peça noticiosa. Os suspeitos, ou arguidos, ou condenados, tanto faz, têm direito à sua privacidade. Já não bastava o sensacionalismo atroz que pulula nos noticiários, temos agora o justiceirismo jornalístico.
O respeito exige-se, mas faz-se também por merecer. As instâncias da justiça não podem servir apenas para serem instrumentalizadas à medida do interesses da acusação, dos acusados ou da cobertura pela comunicação social. Não salvaguardar o direito à privacidade dos suspeitos é fazer crescer exponencialmente o grau de estigmatização que a própria acusação já acarreta, sem falar do que surge com a hipotética condenação.
Pode-se afirmar que há crimes e crimes, que colher a vida de três jovens em corridas pelas estradas nacionais é imperdoável, que matar crianças não admite relativismos e é sinal da decadência dos valores da sociedade. Mas a verdade é que o crime é uma realidade inerente à sociedade. Não há sociedades sem crime, simplesmente porque não há sociedades sem regras. Enquanto houver regras, haverá quem as quebre, por muito chocante que o acto seja. Aliás, quanto mais chocante (desviante) for o crime, menor é a probabilidade que ocorra. E depois, a decadência de valores da sociedade não está tão patente no crime como nas respostas que lhe são dadas, como, por exemplo, na forma como é noticiado. Quando a falta de rigor, de objectividade e de escrúpulos chega a um meio com a importância da comunicação social, quando o apelo subtil à justiça popular tem lugar no horário nobre, dentro dos noticiários televisivos, aí sim, podemos ficar preocupados. Porque essa é a essência da perversão dos direitos e das garantias. Se os sectores mais influentes de uma sociedade não são capazes de estabelecer uma linha de fronteira e cedem com esta facilidade, dificilmente podemos afirmar que temos Justiça, essa mesmo, a que se escreve com letra grande. E o Estado de Direito Democrático também não andará de muito melhor saúde.