A morte banalizada
A RTP anda a emitir a notícia da descoberta de uma filmagem que documenta os massacres verificados na guerra da Bósnia. Nas imagens transmitidas assiste-se, quase em primeiro plano, à execução de um homem. Em nenhum dos noticiários foi feita qualquer advertência sobre o conteúdo violento das imagens.
Há uns anos, Sophie Marceu revelou numa entrevista, após a sua participação num dos filmes da saga "007", o seu espanto por, numa história em que são mortas dezenas de pessoas, ter sido obrigada a repetir inúmeras vezes uma cena até que o enquadramento da sua movimentação permitisse ocultar-lhe o mamilo.
Estranha hierarquia de sensibilidades: a morte está amplamente banalizada, mas o corpo (nem sequer é de sexo que falamos) é assunto tabu. No caso da RTP, ninguém se lembrou de advertir os espectadores para o fuzilamento a que iam assistir. No caso da indústria cinematográfica, a violência armada é facilmente tolerada, enquanto meia dúzia de fotogramas de um mamilo justificam uma censura feroz.
Os problemas das sociedades com o campo sexual e erótico são sobejamente conhecidos. O que causa perplexidade é que se esteja a chegar a um tempo em que a morte violenta não suscita reacções de monta. Um filme não passa de um filme, mas o assassinato a sangue frio a passar em horário nobre como apenas mais uma notícia já é assustador.
4 Comments:
Michael Moore (de quem não gosto muito mas que consumo compulsivamente...) contou um episódio igualmente revelador. No seu filme "Roger and me", mostra um negro que é alvejado a sangue frio na rua. Daí a alguns minutos, o filme mostra uma mulher desempregada que vende coelhos e pergunta ao comprador "pet or food?". O comprador diz "food" e a mulher mata o coelho com uma paulada. Moore diz algo como "se eu recebesse 10 dólares por cada vez que alguém reclamou sobre a cena do coelho, estava rico. Mas nunca ninguém disse nada sobre a cena em que alguém dispara sobre um negro que atravessa a rua."
Também não percebo porque é assim. Mas sei que é assim. E isto é que é perverso.
Talvez seja o efeito habituação.
Apercebi-me disso claramente no verão em que visitei dois campos de concentração. Primeiro Dachau, onde se vêem os instrumentos de tortura, as barracas, as prisões, e depois Bergen-Belsen, onde só se vêem espaços relvados com placas onde está escrito "você está a ouvir o silêncio de 16.000 mortos". Bergen-Belsen foi incrivelmente mais doloroso que Dachau, porque eu não estava preparada para esse vazio horroroso; mas já tinha visto filmes em número suficiente para ter criado "anticorpos" em relação aos objectos do terror. Dachau foi uma confirmação do que eu já sabia, Bergen-Belsen foi um murro no estômago porque não tinha efeito habituação.
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A propósito: já repararam que as notícias sobre os atentados no Iraque estão cada vez mais corriqueiras? Tenho a sensação que a violência está a aumentar, todos os dias há atentados que matam dezenas de civis, mas isso já não parece ser uma notícia muito importante.
As notícias do Iraque são um exemplo perfeito da banalização da violência pelo tanto que têm para analisar. Há a clássica confusão entre novidade e notícia, há o cansaço das redacções e há o cansaço do espectador. É algures no meio destas responsabilidades partilhadas que se encontram as razões da banalização.
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