Recordações do cavaquismo
O declínio do PSD, em meados da década de 90, que culminou na vitória de Guterres, confunde-se com o declínio do cavaquismo. Não foi tanto Fernando Nogueira que perdeu essas eleições legislativas em 95. Foi Cavaco e o seu modelo de governação, o que viria a confirmar-se, se existissem dúvidas, quando perdeu igualmente as eleições presidenciais.
A aura de competência e rigor que Cavaco arrasta não tem equivalência com o que foram os seus governos, muito especialmente o segundo mandato. Um primeiro-ministro é o chefe do governo e o seu responsável último. É ele que responde pela equipa governativa e pelas políticas implementadas. Não se pode, por isso, deixar de associar Cavaco Silva aos muitos e muito maus ministros que teve nos seus governos. Ao nível das políticas por eles seguidas, e tendo presente as entradas significativas de dinheiro proveniente da UE, há muito a criticar. Durante os seus mandatos a aposta centrou-se no betão e no alcatrão. Não houve preocupações ambientais, sociais ou éticas. O interior foi progressivamente abandonado, não se fazendo nada para diminuir a desertificação, o envelhecimento da população e o êxodo rural. O litoral foi deixado aos predadores do sector imobiliário e do (mau) turismo, tendo os autores de toda a espécie de crimes ambientais ficado impunes. A já fraca agricultura foi completamente hipotecada aos interesses dos países do Norte e do centro da Europa. A educação foi deixada para segundo plano e nunca passou de uma pasta para queimar ministros. A qualificação da mão-de-obra foi desleixada praticamente até à obsolescência das competências. Verificaram-se fraudes gigantescas na atribuição dos subsídios à agricultura, à indústria e à formação, o que abalou de tal forma a sua credibilidade que ainda hoje existe esse estigma em relação aos apoios comunitários. Em suma, não ficou um único projecto estruturante digno desse nome, com mais valias a médio e longo prazo. Sobrou uma rede de auto-estradas que permite chegar mais depressa a locais onde não existe nada.
Da mesma forma, não se pode esquecer a desconsideração perante o parlamento e as oposições e o sistemático bloqueio às suas iniciativas. Os governos de Cavaco não conviveram bem com a pluralidade, o que, independentemente das putativas capacidades técnicas, é sempre um mau indicador democrático. Ao mesmo tempo, alimentaram-se as clientelas partidárias e o caciquismo autárquico, do qual o cavaquistão foi um dos melhores exemplos.
A governação de Cavaco Silva também ficou marcada por um estilo muito particular. Os governos de Cavaco sempre evidenciaram sinais de arrogância e de paternalismo, não só perante a oposição, mas também perante todo o país. Criou-se uma separação entre a elite governativa e os eleitores (“deixem-nos trabalhar”), no que isso pode ter de negativo em transparência e em confiança. Algo que a campanha do PS aproveitou muito bem em 1995 e que foi sintetizado em traços distintivos do guterrismo, como o diálogo e a relação com o eleitorado, se bem que mais tarde tenha tido também o seu lado negativo. A imagem que Cavaco cultivou, mais para si do que para os seus governos, tem muito de bafio salazarista: ascética, sobranceira, moralista e autoritária. Uma imagem que continua a cultivar e que pretende acrescentar valor à sua candidatura presidencial. Em verdade se diga, a crise económica que Portugal atravessa e com a crise de identidade que os países ocidentais experimentam em consequência do contexto internacional favorece este tipo de figura. Nos momentos de aflição surgem sempre figuras dispostas a dar o melhor de si para guiarem de novo as nações até ao bom caminho. Os períodos conturbados e nebulosos são solo fértil para o messianismo político.
Tanto as hipotéticas candidaturas de Cavaco e de Soares têm, assim, algo de messiânico. O messianismo não é, de forma alguma, um bom sintoma da saúde democrática. Esta é a maior e mais legítima crítica que se pode fazer às orquestrações postas em movimento para transformar em realidade o confronto que não foi possível fazer em 1996. Outras poderão ser feitas tendo por base a falta de renovação dentro dos partidos. Desde logo, para apurar se estes deixaram de conseguir atrair pessoas com perfil político relevante ou se, por outro lado, passaram a reservar as oportunidades políticas para um grupo muito restrito de militantes. Em qualquer dos casos, uma deficiência a necessitar de urgente correcção.
O descrédito da política passa, numa grande parte, pelo desfasamento com a sociedade. Nestas eleições joga-se uma carta importante neste capítulo. Sem comprometimento mútuo entre a política e a sociedade não há estratégia de evolução que medre.
5 Comments:
O texto é óptimo para reavivar memórias. Tão bom que vou citá-lo no meu blog.
Permiti-me fazer-lhe um link deste post que achei bom.
Mas ...Viva Espanha?!!!
Voltei a ler e rectifico, não é bom, é muito bom!
Obrigado.
Miguel, tomei a liberdade de fazer novamente um link para o seu post.
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