quinta-feira, outubro 23, 2003

O incréu evangelista

José Pacheco Pereira é uma daquelas pessoas que, pelo que pensa, escreve e diz, revela inteligência suficiente para perceber o alcance das suas ideias. Não deixa de ser irónico constatar no artigo de hoje no Público, dedicado à duplicidade, a utilização das técnicas que tanto condena e tão bem domina.
Nomeadamente, referindo exemplos concretos, quando se refere à total responsabilidade do PS na politização do processo, isentando os restantes partidos, não há qualquer referência do BE. Ou JPP optou por não promover o BE ao mesmo patamar dos restantes partidos com assento parlamentar ou prefere manter uma guerrilha contra essa força política.
Logo de seguida cataloga como traço de cultura do PS um fenómeno – a politização dos processos judiciais – que só consegue identificar duas vezes na história do partido. Não lhe parece estranho fundamentar tão grave acusação com a apresentação de apenas dois exemplos. Para quem está habituado a coligir informação e verificá-la é pouco. Mas serve os interesses da sua reflexão e a maioria das pessoas se calhar nem vai notar...
Na realidade, nem sequer se inibe de usar os métodos que criticou na sua primeira intervenção na SIC. Mistura acusações explicitamente imputadas ao PS com acusações que não imputa explicitamente a ninguém, embora implicitamente se possa identificar a intenção de as colar ao PS. Acusa o PS de invocar a democracia para escamotear desejados privilégios, como se a democracia não fosse para todos. Mistura o apoio a Paulo Pedroso, demonstrado pelo seu partido, com o anuimento implícito da culpabilidade dos outros arguidos. Como se uma coisa tivesse relação com a outra. Como se as acusações a Paulo Pedroso não tivessem consequências políticas inevitáveis. Como se não fosse nesse âmbito, no combate político para não soçobrar a este processo, que a direcção do PS estivesse envolvida.
JPP acusa ainda os partidos de terem querido criar uma república de juízes. Nesta acusação isenta-se, por omissão, de qualquer responsabilidade. Como se não tivesse tido participação activa na vida política portuguesa nas últimas décadas. Como se tudo lhe tivesse sido alheio.
Conclui afirmando que as fugas de informação deste caso não são mais graves do que todas as outras, embora reconheça a sua gravidade. Mas, em momento algum, se revela tão moralizador nesta questão como nas anteriores. Refugia-se na desculpa de que já era mau antes. Reconhece que se deve mudar mas nunca antes do fim do processo. É evidente. Ninguém discordará. Só que, como o sistema judicial não pára, depois do fim deste processo haverá certamente outros a decorrer. Mas com esses já JPP não se preocupa. Exactamente da mesma maneira que acusa os outros de não se preocuparem. Irónico, não é?
JPP abusa das referências circulares. Pode-se ler no Público um pouco do que se lê no Abrupto. Pode-se ler no Abrupto um pouco do que se lê no Público. JPP é um mestre da desinformação que tanto critica. E não se coíbe de a usar para servir os seus intentos: a sua vontade de evangelizar de acordo com a sua cartilha.