sexta-feira, novembro 28, 2003

Road Rage

Os desenhos de Calvin & Hobbes acompanham-me desde que os conheci pela primeira vez nas páginas do Público. Numa das melhores histórias em que participam, Calvin, após inventar um duplicador, vê-se confrontado com uma série de cópias suas, absolutamente iguais a si em todos os pormenores. Especialmente no que diz respeito aos seus traços de personalidade característicos. Num livro comentado pelo autor, Bill Watterson refere, a propósito desta história, que seria horrível se um dia nos encontrássemos com um duplicado nosso e descobríssemos aquilo que já todos sabem sobre nós.
Vem esta pequena introdução a propósito de uma constatação que tenho vindo a reforçar de forma muito especial nos últimos tempos. Alterando os nossos referenciais valorativos percebemos melhor como os outros vêm a realidade. Mas, ainda mais do que isso, percebemos como os outros nos vêem.
A condução é um dos mais perfeitos exemplos disto mesmo. Existe, neste contexto, uma certa tendência em classificar o comportamento dos outros por oposição àquele a que recorremos. Uma espécie de ‘eu estou bem, os outros é que estão mal’. Ao curioso fenómeno da condução não será irrelevante que, no trânsito, apesar da relativa proximidade física entre os condutores, a sua interacção raramente se dá em situações de face-a-face. Esta característica inviabiliza o acesso a todo o manancial de expressões faciais que acompanham qualquer acção. No entanto, tal facto não é impeditivo que, durante a condução, se transporte todos os preconceitos, frustrações e ansiedades que nos acompanham noutras ocasiões. Provavelmente, será a conjugação destes dois factores que resulta na road rage.
Não sei se, até certo ponto, enquanto circulamos nas estradas, não nos estaremos a cruzar constantemente com duplicados nossos. A ideia arrepia-me, por todas as implicações negativas que daí se podem extrair sobre nós próprios. Mas que me vou progressivamente convencendo disso, isso vou.