A liberdade e a autoridade
A imposição da autoridade por um determinado regime está sempre associada ao controlo dos meios de repressão e ao domínio das formas de produção e reprodução social. Este facto é válido tanto para democracias como para ditaduras.
Partindo da hipótese de que um regime ditatorial enfrenta uma revolução para impor um regime democrático, coloca-se a questão, como refere o Bota Acima, de saber de que forma se vai dar a superação do primeiro. Ou seja, de que forma se garante uma certa estabilidade normativa durante o período de transição?
No período de transição para um regime mais aberto, existe uma inevitável luta pelo poder. Sabendo os diferentes grupos de interesse que esta é a melhor altura para fazerem vingar a sua agenda, é natural que os ânimos se exaltem. Perder essa oportunidade pode significar o asfixiamento da sua capacidade interventiva e transformadora. Quem for capaz de moldar o período de transição de acordo com os seus interesses tem boas hipóteses de ver salvaguardados os seus interesses por um período muito mais alargado de tempo, por exemplo, tomando parte activa na reconstrução do edifício legislativo nas suas variadas vertentes. Para assegurar essas oportunidades, alguns estarão dispostos a recorrer a meios mais violentos. Independentemente disso, todos procuram alcançar uma posição privilegiada na mesa onde se tomam as decisões.
A forma como se processa o período de transição depende também, e sobretudo, do controlo dos meios de repressão. No entanto, o papel que estes desempenharam no regime deposto influencia o papel que podem vir a desempenhar neste período e no futuro. É evidente que se amplos sectores policiais e militares estiveram ligados ao regime ditatorial não se poderá contar com eles após a deposição desse regime. Assim sendo, se a transição for feita à revelia dos meios existentes, será necessário conceber uma estratégia que assegure uma certa estabilização, o que pressupõe a substituição dos meios humanos por outros capazes de assegurar a tarefa no respeito dos ideais que se pretendem impor. O que, por sua vez, depende do número de efectivos que poderão ser dispensados para essa tarefa, dos meios de que dispõem e da relação entre estes dois aspectos e o tamanho do território onde devem operar. A logística não é, de todo, uma questão a descurar.
Talvez as maiores ou menores convulsões associadas ao período transitório dependam da conjunção destas duas variáveis. A luta pelo poder será tanto mais intensa quanto menor for a capacidade de renovar o aparelho repressivo do Estado. E isto, claro, partindo do princípio de que a mudança de regime agrada à generalidade da população. Se assim não for, os problemas poderão ser ainda maiores. Mas, também aqui, a capacidade de os levantar dependerá da maior ou menor fragilidade do novo regime. Ironicamente, a transição e a garantia da liberdade passam pela rapidez e eficácia do controlo sobre os meios de imposição da autoridade.
O direito à liberdade é um valor que está acima das perturbações que caracterizam muitos períodos transitórios. Não são certamente as provações que antecedem a almejada liberdade que servem de desculpa para a retardar. O que não inviabiliza que todo processo transitório seja acautelado, de forma a optimizar as situações de conflito naturalmente existentes, aproveitando o que têm de bom para oferecer ao mesmo tempo que se procura reduzir o sofrimento que, eventualmente, também acabam por causar.
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