quarta-feira, agosto 18, 2004

O respeito e o medo

Começa a ser comum encontrar veículos que exibem um número de contacto para, deduz-se, eventuais reparos ao comportamento do seu condutor. As frases que acompanham o referido número não deixam dúvidas, chegando mesmo a inquirir directamente os restantes automobilistas sobre o estilo de circulação do condutor.
O problema da condução e da sinistralidade assume proporções preocupantes em Portugal. Não está, portanto, em discussão a necessidade de levar a cabo medidas que ajudem a inverter esta tendência. Mas já é bastante discutível se este será o melhor método de o fazer. O comportamento ao volante pauta-se, muitas vezes, por uma desresponsabilização quase total e por um desrespeito pelas normas e pelas pessoas. No entanto, o método a que algumas empresas estão a recorrer, por si só, não promove essa responsabilidade e esse respeito por terceiros. Pelo contrário, o que está em causa é a promoção de um clima de medo. O que é manifestamente insuficiente, uma vez que, sempre que as condições de manutenção desse clima de medo não estejam plenamente satisfeitas, não haverá por que não violar novamente as regras.
Mas o que se torna mais preocupante é que este método não depende de um exercício de autoridade das entidades responsáveis. O controle não compete às autoridades, nem sequer a equipas de fiscalização das próprias empresas. Na realidade, trata-se de um convite a todos os utilizadores das estradas para se transformarem em delatores. Por detrás destas situações encontra-se uma promoção, mais explícita que implícita, do espírito de denúncia. Assume-se, de uma forma latente, a incapacidade das autoridades para efectuarem o seu trabalho e transfere-se o fardo para a sociedade em geral. Em última análise, todos passamos a ser polícias de alguém. Sendo que, naturalmente, a apreciação se rege pelos critérios absolutamente subjectivos do observador e pode ser deturpada ao sabor das incorrecções de interpretação e dos lapsos de memória. Trata-se de um passo na direcção de uma sociedade assustadora, baseada sobretudo no medo e na denúncia, que não faz nada pela construção perene de comportamentos responsáveis.