quarta-feira, agosto 04, 2004

Um plano ideológico para uma alternativa

A proposta que José Sócrates apresentou segunda-feira no Público reforça a ideia que já se tem do seu autor. Está presente uma lista de boas intenções, mas que, no entanto, são abordadas com uma certa superficialidade. Encontra-se também uma apologia centrista inequívoca que torna óbvia a vontade de José Sócrates em levar o PS de novo para o centro. O que não é propriamente uma novidade. Apelos nesse sentido já vinham sendo feitos, desde bem cedo, durante a liderança de Ferro Rodrigues. O que importa compreender é que levar o PS para o centro implica caminhar no sentido da direita. É isso que Sócrates se prepara para fazer, caso ganhe as eleições que vai disputar.
A questão já ameaça começar a ser recorrente neste blogue: qual é o melhor posicionamento para o PS? Há, pelo menos, duas perspectivas para abordar esta questão. Em primeiro lugar, podemos perguntar-nos sobre o que mais convém ao PS, do ponto de vista eleitoral. Em segundo lugar, podemos interrogar-nos sobre o que necessita o país, do ponto de vista do sistema democrático de partidos. As duas abordagens estão, porém, intimamente relacionadas. Aparentemente, ao PS convém uma direcção capaz de ganhar os próximos desafios eleitorais, sobretudo as legislativas em 2006 (se não for mais cedo). Mas a que preço? Convirá ao PS uma deriva centrista, quase puramente eleitoralista?
O alinhamento dito centrista é, na verdade, um alinhamento à direita. A candidatura de José Sócrates pretende, de uma forma assumida, retomar o caminho guterrista. O problema é que a doutrina guterrista definhou, vítima de uma incapacidade quase patológica de se afirmar num sentido ideológico. O resultado é o que já se conhece. Abriram-se as portas para um governo de direita que não satisfaz os portugueses e não providencia melhorias nas suas vidas, nem a curto, nem a médio prazo. Mas, ainda pior para o partido, ficou a impressão, muito alimentada pela comunicação social, que o PS não conseguiria gerar um projecto alternativo credível num futuro próximo. Verdade seja dita, para isso também contribui, e muito, o facto de a liderança de Ferro Rodrigues, assim como a própria candidatura de José Sócrates, contarem com muitos nomes do tempo de António Guterres. Assim, o eleitorado ficou confrontado com uma enorme semelhança nos nomes, ao mesmo tempo que a diferença ideológica que Ferro Rodrigues tentou introduzir era incessantemente atacada e limitada (no duplo sentido do que Ferro não conseguia fazer e do que não o deixavam fazer). Ainda assim, a liderança mais à esquerda de Ferro Rodrigues não impediu que o PS registasse uma votação histórica nas eleições europeias, pese embora os muitos motivos que se apontam para tentar diminuir uma derrota estrondosa da direita coligada.
De um lado temos, então, o projecto de Ferro Rodrigues, com os defeitos que tinha e mais os que lhe quiseram impingir, que se mostrou capaz de lutar e vencer eleições. Não chegando a ser governo, gorou-se a oportunidade de avaliar a sua capacidade para cumprir o que vinha preconizando. Do outro temos uma solução já conhecida, herdeira de uma política que em poucos anos desiludiu o eleitorado. A escolha será entre viabilizar uma reedição do guterrismo ou devolver a oportunidade a um projecto mais ideológico, mais concreto e definido, que se assuma mais distante do que tem vindo a ser feito em termos de governação. O risco que é apontado a esta última proposta é o de ser demasiado radical e afastar o eleitorado. Mas o PS não foi, não é e nunca será um partido radical. E os eleitores, para infortúnio dos críticos, estão bem conscientes disso.
Tendo reflectido sobre o que mais convém ao PS, podemos agora discutir o que mais convém ao sistema político português. Para complicar um pouco mais as coisas, podemos ainda imaginar o sistema partidário com uma direita constituída pelo PSD e pelo PP, podendo tomá-los coligados ou autónomos. No primeiro caso, considerando que o PP arrastaria o PSD mais para a direita, abrir-se-ia um espaço ao centro onde o PS poderia colher votos. Mas a verdade é que, partindo do princípio de que dificilmente haverá transferência de votos do PP para o PS, muito do eleitorado mais afecto ao PSD não morre de amores pela esquerda, qualquer que seja a sua posição. E, mesmo não se revendo numa coligação/fusão PSD-PP, provavelmente teria tendência a manter-se fiel ao seu campo político. No segundo caso, tomando o PSD e o PP como concorrentes eleitorais autónomos, uma deriva centrista do PS, acompanhada de uma deriva centrista do PSD, talvez como resposta a uma necessidade de não se ver confundido com o campo do PP, sobretudo num período pós-coligação, deixaria os dois partidos a disputar o mesmo eleitorado. Gerar-se-ia uma aproximação de facto entre as ideologias do PS e do PSD. Desta feita, o eleitorado ficaria com dois partidos demasiado semelhantes. A alternância não produziria quaisquer resultados palpáveis e, certamente, jamais se constituiria como alternativa. A pluralidade do sistema partidário ficaria extremamente reduzida. Como sabemos, sem pluralidade não se pode falar verdadeiramente em democracia, pelo que é da sanidade do próprio sistema que estamos a falar. Mais ainda, com os dois principais partidos mergulhados numa crise de identidade e com um sistema com menos referências será muito mais fácil o surgimento de extremismos de carácter político. Um cenário destes seria campo fértil para facções de índole hiper-moralista, autoritarista e totalitarista. Os inconvenientes são demasiado óbvios para explicá-los.
O cenário traçado talvez pareça demasiado negro, ou mesmo catastrofista. Mas é preferível falar abertamente das coisas como elas poderão ser para que depois ninguém se possa queixar de que não foi avisado. Os sinais existem. A forma como os interpretamos e como agimos em função disso é que pode mudar. Precaver o futuro começa com as acções que se tomam no presente. Para que amanhã não seja tarde demais.

1 Comments:

At 11:41 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Boa noite

Salvo melhor opinião, o problema nem passa tanto pelo que diz nos seu texto, mas pelo facto de não se perfilar nenhuma candidatura à esquerda, suficentemente forte para se impôr à de Socrates.
Deve-se saudar a coerência de Manuel Alegre, embora apenas simbólica nos resultados.
Estamos assim condenados entre a Direita "mais" e a Direita "menos".
Embora me pareça que os portugueses já não se estão a preocupar muito com isso.

Um abraço
http://votemnasputas.blogs.sapo.pt

João: viriatorus@hotmail.com

 

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