sexta-feira, abril 30, 2004

Apito laranja

A investigação que culminou no caso Apito Dourado já tem sido referida como passível de ser tão traumática para o PSD como o caso Casa Pia o foi, e tem sido, para o PS. No entanto, não será caso para isso. Não só as reacções que se geram perante as suspeitas de crimes de corrupção, de fuga fiscal, de peculato, etc., são extremamente diferentes, por exemplo, das que se geram perante os crimes de pedofilia, como a própria lista de envolvidos num e noutro caso difere significativamente.
O primeiro tipo de crimes tem tendência a não suscitar uma reacção tão vigorosa da sociedade. São menos apelativos à emocionalidade porque se reportam a entidades e a noções abstractas. Mais ainda, estão muito relacionados com a sociabilidade típica de uma sociedade como a portuguesa, construída à volta de redes de relacionamentos privilegiados que, muitas vezes, ultrapassam os limites éticos e legais. A cunha e o compadrio não nasceram de geração espontânea.
Por seu lado, um crime como a pedofilia tem tendência a ofender a consciência de um número elevado de pessoas. Será, talvez, uma das formas de criminalidade mais generalizadamente condenadas, a par do homicídio. Não só é praticada contra uma pessoa (e não contra uma entidade mais ou menos abstracta como o Estado), como é praticada contra crianças, que ainda representam símbolos de pureza e ingenuidade, gerando um sentimento de repulsa ainda maior.
Desta forma, sendo que o peso social da gravidade do tipo de crime está relacionado com a forma como a sociedade o encara, resulta que o estigma de ser acusado de uma ou outra prática é também diferente. Aliás, a título de exemplo, uma das formas de avaliar esta diferença reside no facto de a pedofilia ser um crime muito mal visto mesmo no meio prisional. Os condenados por pedofilia podem esperar uma reacção muito hostil por parte dos outros reclusos.
Outro aspecto a ter em conta são os nomes envolvidos nos dois processos. No caso Casa Pia a única personalidade política a ser acusada foi Paulo Pedroso. Na investigação Apito Dourado há mais nomes de políticos referidos, mas estão sobretudo ligados ao PSD. No entanto, enquanto Paulo Pedroso era a segunda figura do PS, tendo exercido o cargo de Ministro e de Secretário de Estado, Valentim Loureiro e José Luís Oliveira são figuras com peso sobretudo local. A sua importância partidária pode ser elevada, mas não corresponde a uma exposição como aquela a que estava sujeito Paulo Pedroso. Com o processo Casa Pia o PS viu-se desfalcado de uma das figuras da sua liderança, enquanto no PSD as consequências não foram tão lesivas. De facto, José Luís Oliveira é um político que, apesar da sua grande influência local, não recolhia qualquer atenção mediática e Valentim Loureiro é sobejamente conhecido por estar ligado ao mundo do futebol. Se não fosse esse o caso, duvido que alguém se desse ao trabalho de fixar o nome do presidente da CM de Gondomar. Além disto, sendo que os nomes dos políticos envolvidos neste caso concreto estão ligados a um partido específico, esta é uma forma de criminalidade que já é habitual ver tratada nos jornais e à qual sucumbem políticos de todos os quadrantes. Só para referir dois nomes, estão neste momento a braços com a justiça Fátima Felgueiras e Adelino Ferreira Torres, respectivamente, do PS e do CDS-PP. De certa forma, já nos acostumámos a esta realidade e os nomes que surgem são só mais uns, subsistindo quase sempre a impressão de que as investigações pecam por defeito.
Deste modo, as consequências políticas de cada um dos casos para os respectivos partidos envolvidos são, obviamente diferentes. O peso das acusações no caso Apito Dourado dilui-se pelo espectro político, que não recolhe particular simpatia nem credibilidade junto da opinião pública, e até pela própria economia portuguesa, especialmente permeável a este tipo de criminalidade. A cúpula do PSD passou ao lado da questão, enquanto a liderança socialista se viu arrastada para o centro do turbilhão Casa Pia. Não será certamente o caso específico dos negócios mal explicados da Câmara de Gondomar que trará significativos amargos de boca à coligação governamental. Mas, sem dúvida, o acumular de casos de duvidosa competência, quando não de duvidosa honestidade, que caracteriza a governação actual acabará por fazer sentir a sua influência nas urnas.