Contra o branqueamento da ditadura
Ver Paulo Portas nas celebrações do 25 de Abril é um desconforto levemente compensado pelas vaias que a assistência lhe dedicou. O líder do CDS-PP esteve presente no estrito cumprimento das suas funções ministeriais, porque, de outra forma, nunca poderia ter estado ao lado do 25 de Abril como nunca esteve nestes 30 anos. Das suas declarações sobre o 25 de Abril praticamente só sobressai a crítica ao processo de descolonização. O ressentimento é tanto que gera uma incapacidade de reconhecimento público das suas conquistas sociais e económicas que evolui para uma postura constante e ostensiva de demarcação.
O mesmo tipo de abordagem ao 25 de Abril pode ser encontrado num recente post do Blasfémias. Todas as energias são concentradas num ataque quase indiscriminado à revolução sem o necessário e devido contraponto de elogio aos avanços conseguidos.
A argumentação de Rui A., que consiste numa tentativa de denegrir os objectivos e os resultados de Abril, é absurda e insultuosa. Quer-se fazer crer que o regime ditatorial não seria tão ignominioso ou violento como é actualmente descrito. Seria certamente interessante que Rui A. discutisse os seus pontos de vista com Humberto Delgado ou com Dias Coelho, por exemplo, o que não é possível porque ambos foram assassinados pela PIDE. No entanto, ainda restam muitas testemunhas das perseguições e das torturas. Mesmo assim, o essencial desta questão é saber quantas eleições falseadas e quantos presos políticos são necessários para que se possa utilizar a palavra ditadura e quantos mortos e torturados são necessários para acrescentar a palavra brutal?
O branqueamento da ditadura salazarista, que está quase sempre associado à crítica da revolução que a derrubou, começa a ser tristemente comum em certas alas da direita. É difícil aceitar tantas críticas ao 25 de Abril quando estas não são compensadas por um igual empenho na demonstração das inúmeras e gravíssimas falhas do regime que o antecedeu. Por exemplo, segundo se lê no post de Rui A., o regime era tão brando que nem se defendeu, os interesses dos funcionários da PIDE não foram levados em consideração no período revolucionário, à PIDE teria sucedido uma polícia política ainda mais temível, um ano e meio seria um período de transição inadmissivelmente longo, a democracia sindical tardou igualmente, o período após o 25 de Abril teria constituído o momento alto para o esplendor da miséria humana em Portugal, deixando vir ao de cima os instintos mais baixos de gente reles e rasteira. Mas nem por um momento se nota qualquer preocupação de Rui A. em efectuar a fundamental comparação das garantias e liberdades consagradas antes e depois da queda do Estado Novo, ou sequer fundamentar as suas ideias com exemplos concretos e precisos. Nem uma linha é gasta para explicar que a ‘brandura’ do Estado Novo não só construiu uma polícia política temida como também nos arrastou para uma guerra injusta e terrível, ou que o tratamento dado aos inspectores da PIDE só se pode considerar inadmissível à luz dos valores democráticos de um Estado de Direito respeitador da dignidade humana que o Estado Novo nunca se preocupou em assegurar, ou que um período de ano e meio para instaurar uma democracia funcional e respeitada pelas forças políticas entretanto legalmente constituídas é um período perfeitamente razoável, tanto mais quando comparado com os 48 anos de ditadura que o antecederam. Rui A. chega mesmo a defender que uma transição não revolucionária, proveniente dos novos rostos liberais que o regime começava a deixar emergir, teria ocorrido com naturalidade e bastante melhor. Muito se poderia especular sobre esta forma de transição. No entanto, qualquer passo nesse sentido teria de ser antecedido de alguns esclarecimentos. Nomeadamente, quantos anos mais de Tarrafal, Caxias e Peniche estaria Rui A. disposto a tolerar? Quantos anos mais de mortos e estropiados em África seriam admissíveis? Quantos mais actos eleitorais falseados e quantos mais atropelos das liberdades de cidadania?
Com certas coisas não se pode pactuar. Com o sofrimento, com a miséria, com a violação dos direitos e das liberdades. Se Rui A. não se importava de pactuar por um tempo indefinido com este tipo de situação é a sua opção e o 25 de Abril deu-lhe o direito de a expressar e defender publicamente. Que queira fazer vingar as suas ideias como uma solução viável e digna de participação cívica e política, ou de forma de estar na vida, para todo um país já é outra coisa. Felizmente, das inúmeras ‘desgraças’ que a revolução nos deixou, uma delas foi a possibilidade de não nos vergarmos à vontade de um punhado de iluminados que decidem quais são os lados e as interpretações certas da História.
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