segunda-feira, maio 02, 2005

Sobre o artigo 175º

Através do Irreflexões cheguei a um post no Blasfémias sobre a sentença aplicada no caso de pedofilia julgado nos Açores. Neste último, insurge-se o João Miranda contra a decisão do tribunal de não aplicar o artigo 175º, que consagra pena de prisão por actos homossexuais de relevo com adolescentes, ao entender que viola o preceito constitucional de não discriminação em função da orientação sexual. Entende o João Miranda que o artigo 175º não existe para segregar a homossexualidade, mas sim para defender as vítimas, pelo que a decisão judicial é reprovável. Infelizmente, este é só um dos lados da questão.
Levanta-se, desde logo, o problema de saber, em concreto, o que são actos homossexuais de relevo. Admitindo a interpretação de Carlos Loureiro, serão aqueles que não se encontram previstos no artigo 174º, ou seja, aqueles que não se caracterizam pela cópula, pelo coito anal ou oral. Como Carlos Loureiro não vai mais longe na sua interpretação, ficamo-nos pela imaginação para definir os actos sexuais de relevo que não se incluem nos já citados.
O problema com a argumentação de João Miranda é que se limita a considerar o dano provocado à vítima, partindo do princípio de que, numa sociedade culturalmente de pendor heterossexual, o abuso homossexual acarreta consequências mais marcantes para a vítima. No entanto, as leis criminais não respondem apenas aos danos provocados às vítimas. Existem também para ressarcir a sociedade naqueles aspectos em que ela se possa sentir ofendida. Portanto, no mínimo, deve admitir-se que uma lei ou um artigo deste género são redigidos como reacção a um sentimento social de desconforto com o acto homossexual, sentimento que é transmitido para a legislação que abarca os abusos sexuais.
A questão de saber se, pelo facto de um meio social se sentir mais incomodado com o abuso homossexual do que com o abuso heterossexual, o dano resultante para a vítima de abuso homossexual ser também superior não perde relevo, mas deve ser bem enquadrada. Pessoalmente, considero que o dano causado à vítima de um abuso sexual é suficientemente significativo para que nos percamos com preocupações de estilo. Porque, de facto, argumentar que o dano do acto homossexual de relevo só não é maior se o abusado tiver uma orientação homossexual definida é quase o mesmo que dizer que uma pessoa gosta um bocadinho mais de ser abusada por algumas pessoas do que por outras. É redutor, preconceituoso e ofensivo.
A violência psicológica, mais que a física, deixa sequelas duradouras que afrontam a identidade da vítima, funcionando como um choque ontológico capaz de abalar a estrutura da identidade pessoal e social. O abuso sexual é uma das formas que mais gravemente atenta contra a integridade individual. É, justamente, alvo de repugnância social generalizada. Mesmo dentro do meio prisional, é um comportamento extremamente mal visto pelos reclusos, sendo comuns acções de represálias contra os condenados por crimes sexuais. Perante uma realidade tão traumática para as vítimas, parece elementar que o dano causado seja determinado na especificidade de cada caso, e não de forma arbitrária, ao mero sabor da "sensibilidade" do legislador. As implicações traumáticas do abuso devem ser apuradas em tribunal, recorrendo ao auxílio de técnicos especializados e de competência reconhecida. Partir do princípio de que a natureza dos actos de abuso determina o dano causado é simplista e, em última análise, pode mesmo beneficiar o abusador. A máxima "cada caso é um caso" faz particular sentido nestes campos e, por isso, o artigo 175º, da forma como o entendo, apoiado no que escreveu Carlos Loureiro, deve ser revisto para passar a incluir os actos heterossexuais de relevo. Dessa forma, não só deixará de ser possível entrever um certo preconceito no artigo, como se terá um instrumento de protecção bastante mais amplo.