sexta-feira, agosto 19, 2005

Genealogia

Do meu avô paterno recordo muito o seu sorriso calmo. Trabalhou e correu atrás de autocarros e eléctricos até adoecer. Morreu octogenário, vencido, em menos de um ano, por um cancro nos intestinos. No dia em que soube da morte do último irmão vivo, sentou-se, fechou a cara e murmurou, sem uma lágrima, mas com toda a tristeza do mundo, "agora só sobro eu".
O meu avô materno, homem cheio de ternura e compreensão, tinha também um sorriso calmo, mas com mais traços de garoto. Sabia o valor infinitamente mais alto de mostrar caminhos, em vez de apontar locais de chegada. Portuense e portista indefectível, viveu para celebrar a final de Viena, mas a máquina vitoriosa de Mourinho, que o teria enchido de alegria e orgulho, veio muitos anos depois da derradeira trombose que o levou. Numa noite de Consoada sentiu-se mal e deu entrada num hospital do Porto, onde veio a falecer aos primeiros dias do novo ano. O Natal nunca mais foi o mesmo, depois disso.
A minha avó paterna está, neste momento, a passar uns dias em casa dos nossos primos, numa aldeia perto da Sertã. Há anos que se esforça por vencer as saudades do marido e dos mais de cinquenta anos que estiveram juntos. E também de ter a família mais perto. Desconfio que nunca se habituou à ideia de ter filhos e netos adultos. Tem de se preocupar com as quedas, para que não voltar a partir mais um dos seus frágeis ossos, perigosamente rendilhados pela osteoporose. Para seu desgosto, está muito longe do planalto angolano, onde nasceu, e da cidade do Lobito, para onde foi viver depois de casar. Não consegue evitar emocionar-se ao recordar esses tempos imortalizados nos álbuns de fotografias.
A minha avó materna já não se preocupa com as quedas, que tanto a martirizaram, porque está há mais de um ano reduzida a uma cadeira de rodas. De todos, sempre foi a mais dura. Maria-rapaz, enquanto nova corria atrás dos carros de bombeiros pela cidade do Porto. Os pais não a deixaram fazer mais que a quarta classe e a Escola de Belas Artes nunca passou de um sonho. Agora há-de passar os dias com saudades da mui nobre e sempre invicta cidade natal. Deve ter medo de não lá voltar, para rever vivos e mortos. No dia em que enterrou o marido, sentou-se ao meu lado, consolou-me o choro e disse-me para ser forte pela minha mãe. E eu tentei ser.
Tiveram e têm os seus defeitos; quem não os tem? No essencial, pessoas honradas e honestas. E, se me perguntarem, a avaliar pela geração seguinte, mas não só, deram um excelente contributo para formar uma família de pessoas com as mesmas qualidades.

6 Comments:

At 5:54 da tarde, Anonymous Anónimo said...

...bem me parecia que havia por aí uma costela portuense!!!!

 
At 6:31 da tarde, Blogger Miguel Silva said...

Bem mais que uma.

 
At 1:41 da tarde, Blogger pdasilva said...

...e como se caracteriza a geração do autor?

 
At 1:08 da manhã, Blogger Miguel Silva said...

Não falei da minha geração para não dar impressão de que o post pudesse conduzir até mim.
Sobre mim, estão aqui quase dois anos de escritos sobre tudo e mais alguma coisa. Havendo paciência para ler, depois é só elaborar sentença.
Sobre os que me acompanham nesta geração, não só não ficam atrás em honradez e honestidade, como, se não me enganar, fruto das oportunidades que o trabalho e os sacrifícios dos que os antecederam possibilitaram, se destinam até a chegar mais longe. Tenho muito prazer em tê-los como família e, mais que tudo, como amigos.

 
At 1:54 da manhã, Blogger Roberto Iza Valdés said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

 
At 10:50 da tarde, Blogger Roberto Iza Valdés said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

 

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