quinta-feira, agosto 18, 2005

O valor da opinião anónima

O João Morgado Fernandes partiu de uma premissa, a meu ver, bastante correcta. Existem factos e existem opiniões e os dois não se equivalem. Um facto, em princípio, é passível de verificação empírica. Ou corresponde à verdade ou não corresponde e ponto final. Encontra o seu valor no respeito por esta relação com a verdade.

Uma opinião é, por definição, subjectiva. Não tem a correspondência unívoca com a verdade que o facto pode ter. A opinião é uma visão da realidade, pelo que convém que se aproxime desta, mas o grau de aproximação é muito difícil de estabelecer. Por esse motivo, também não se pode dizer que a opinião valha por si só. Em última análise, isso seria o mesmo que admitir uma reabilitação da moral sofista. A adequação à realidade tem de ser sempre um factor a considerar na avaliação da opinião.

O mundo actual caracteriza-se por uma profusão de informação, de saberes e de campos de conhecimento. Existe, de facto, uma impossibilidade para o comum mortal de se pronunciar com autoridade sobre uma vasta gama de acontecimentos, pelo simples facto de não ter capacidade para os acompanhar a todos. É nesta óptica que surge a figura do perito. A maior parte das vezes delegamos a função de conhecimento aos peritos e formamos opinião baseados no que é, com efeito, a opinião deles. Esta escolha permite que nos concentremos naquilo que são as nossas competências, facilitando-nos, e muito, a vida quotidiana.

O facto de não dominarmos os assuntos não nos impede de sobre eles opinar. Quanto muito, diminui-nos a credibilidade para o fazer, e é até justo que isso aconteça. Ninguém se quer meter num avião baseado nas garantias de segurança dadas pelos bagageiros, mas sim pelas dos técnicos competentes. Tem que se estabelecer uma relação de confiança com o perito para que a sua palavra seja mais credível que a opinião de senso comum.

Isto deixa-nos num ponto crucial que é o dos papéis e das identidades. A relação de confiança só se estabelece com sucesso se a identidade do perito corresponder à que se espera desse papel social. Falamos de identidade e não de identificação. Não interessa se o perito é A ou B, mas se o comportamento adoptado corresponde ao que acreditamos que um perito deve ter. Porém, negar o peso do nome seria ingénuo. Os peritos tornam-se tanto mais credíveis quanto mais conhecidos forem. É essa a razão pela qual quando se procura um canalizador se telefona aos amigos a perguntar se recomendam alguém. Não conhecendo o perito, podemos garantir, pelo menos, que conhecemos quem o conheça.

Mas não é esta a questão fundamental. O ponto onde nos devemos centrar é na questão da identidade da pessoa em causa. Não quem é, mas, sim, se possui as características de quem afirma ser. Um problema de expectativas.

A construção da imagem, ou seja, da expectativa, resulta dos preconceitos correntes na sociedade sobre o objecto em questão e, posteriormente, da relação concreta que com ele se estabelece, a qual pode servir para reforçar ou desfazer o preconceito. Transpondo este cenário para a realidade dos blogues, verificamos que o anonimato não é importante enquanto função (des)legitimadora da opinião emitida. Em última análise, é possível fazer corresponder ao texto publicado a identidade do bloguista. Basta acompanhar um blogue durante algumas semanas (durante alguns dias?) para se descobrir simpatias políticas, modelos valorativos, até pormenores da vida pessoal, como o estado civil, progenitura, profissão, etc. Portanto, sendo possível reconduzir a opinião emitida num blogue à identidade do bloguista, relacionando-a com tudo o que aí foi publicado, existe uma responsabilização pública efectiva do bloguista pelo que escreve e a questão do anonimato torna-se secundária. O mais importante é fazer corresponder a opinião emitida aos possíveis conhecimentos que o bloguista afirma ter.

O que nem sempre é possível é fazer corresponder à identidade do bloguista uma identificação pessoal, fruto do anonimato ou da utilização de um pseudónimo. A questão das caixas de comentários é ligeiramente diferente, porque estas podem permitir um anonimato total. Mas também só tem caixas de comentários quem quer e há-de ser sempre possível, se necessário, indagar IP’s. Aliás, para este efeito, não se pode nem se deve meter no mesmo saco a difamação, ou o insulto, e a opinião. A opinião pode ser mais positiva ou mais negativa, mas só é censurável se entrar no terreno do ilícito e nesses casos há figuras jurídicas para assegurar os direitos dos ofendidos.

Sobretudo, não podemos esquecer que as pessoas tanto têm direito à opinião como à privacidade. Quem conhece as realidades distintas da vida numa grande cidade e numa pequena aldeia sabe bem as vantagens e desvantagens do anonimato social. Numa pequena aldeia (e nalguns bairros citadinos) é praticamente impossível ter vida privada. Por outro lado, numa cidade, as relações entre vizinhos são, a maior parte das vezes, institucionais e altamente formais. Nas cidades ganha-se em privacidade o que se perde em intimidade. Na blogosfera, apesar das devidas diferenças, não existem razões para que os relacionamentos não se pautem pelas regras que imperam nas relações presenciais. A blogosfera exerce uma auto-vigilância muito crítica. Está-lhe na essência. É de uma rede que falamos, com múltiplos pontos de contacto e há assuntos ou acontecimentos que acabam por ser transversais a um número muito elevado de blogues. A título de exemplo, toda a gente sabe que existem blogues extremistas, que professam, por exemplo, causas racistas e xenófobas, mas, como pode ser comprovado nos sites que se dedicam a inventariar esses registos, a notoriedade que alcançam é diminuta.

Por tudo isto, talvez não seja demais afirmar que a blogosfera reúne condições de excelência. Permite uma participação cívica intensa e empenhada sem cobrar demasiado em perda de privacidade. Ou cobrando apenas na exacta medida do que estivermos dispostos a ceder. E parece que, até ao momento, tem funcionado muito bem assim.

8 Comments:

At 8:04 da tarde, Anonymous Anónimo said...

...parece-me que as dissertações sobre o assunto podem dar tese....

 
At 11:07 da tarde, Blogger mfc said...

Isto é uma grande cidade, mas como andamos só pelo nosso bairro "conhecemo-nos" todos, sabendo perfeitamente o que esperar quando se visita algum vizinho.
Por vezes também se encontram surpresas, umas agradáveis, outras nem tanto.
É asim a vida e isto não foge do paradigma.

 
At 12:42 da manhã, Blogger Miguel Silva said...

MFC, é isso, cada um acede a uma parte pequena da rede e acaba por a conhecer bem.

Sophisticated lady (isto custa a escrever), pergunto-me sempre se dissertações deste tamanho e cariz podem interessar a alguém.

 
At 10:13 da manhã, Anonymous Anónimo said...

1º- Dissertações: pois também não sei... mas com tanto tempo dispendido em reflexões sobre o assunto....

2º Sophisticated Lady: custa...mas se não conheçe, procure conhecer. Esta é uma bela melodia com letra e música de Mitchell Parish, Duke Ellington e Irving Mills, cujo título é assim mesmo. Posso ainda dizer-lhe que há uma versão lindíssima entoada pelo Caetano Veloso que vale a pena ouvir, para quem gostar naturalmente.

 
At 3:36 da tarde, Blogger Miguel Silva said...

Vou seguir o conselho.

 
At 4:34 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Este conselho musical é muito apropriado. Permito-me apoiá-lo.

O seu texto (tese, para algumas/ns) está quase inatacável. Qualidade. Permito-me, apenas no seu registo (um apenas não pejorativo) inquirir-me se realmente existem "factos". Não existirão apenas "opiniões"? - [fulano "morreu" é insubstituível, aliás a única certeza. Mas diferentes tipos de cristãos lhe darão diferentes significados, já para não falar do que um ateu entenderá, mais um budista etc, e dentro de cada uma destas categorias múltiplas formas de entender a morte de alguém, um alguém em abstracto, não falo da relação entre o ido e o sobrevivente enunciador]

Depois há outra coisa, mas simples, que é a da responsabilidade social. V. aparta bloguista e indivíduo, uma quase esquizofrenia identitária, uma duplicidade que poderá ter validade artística mas que acaba por confundir na qualidade da opinão. JMF dá um exemplo, até de aparência malévola, referindo um tal de manel da grande loja - aquele tipo de opinião (eu não li, não frequento muito aquele blog) como seria entendido se se soubesse que o tal manel seria um jurista, ou melhor, que valor daríamos ao jurista se soubessemos que opina daquele modo (parece-me aqui haver uma até deselegante alusão, JMF indicia saber quem é o homem, saber que é jurista). OK, deselegante, mas coloca o dedo. Podemos atoardar à vontade ao teclado e sermos o mui responsável jurista/etc quando deixamos de ser bloguistas? O que somos nós? Este cerceia o opinativo? Sim. Mas dá-lhe peso, dá-lhe gente.

Lendo o VE encontro alguém relativamente desalinhado e crítico. E parece-me (parece-me) ver alguém (um tal de Miguel Silva) que não refutará algo que é também meu princípio - o exercício da cidadania faz-se também no exercício da profissão. Pelo menos eu assim o entendo. Ou seja, a minha cidadania é pública, o meu privado não é mensurável no seu âmbito: a minha cidadania não é a minha vida sexual, conjugal, comensal. A minha cidadania não são os meus hipotéticos anseios artísticos. Tudo isso, e mais algum etc., é privado - ainda que se eu fosse artista pudesse publicitar a minha arte e até torná-la de participação pública se assim o entendesse / almejasse (ou até se a entendessem como tal). Mas a actividade profissional não é o domínio privado, é público, e daí de cidadania (não "deve ser", "é"). Será legítimo deitarmos cá para fora tudo o que vem à cabeça, numa ilusão de sem controle (para além do acordo e desacordo dos links alheios e sitemeters respectivos)?

Quanto ao perito, ao "esperto", ao reino do factual, acho que enfim...estamos também no domínio das opiniões - sem ironia, é absoluta verdade, ando com problemas na canalização das casas de banho, têm-se sucedido as empresas e os biscateiros, e isto nunca mais acaba, mas vai mudando. Faço-me entender?

Quanto às teses lembro-me que quando jogava xadrez li imenso sobre aberturas e (menos) sobre finais. Nunca fui grande jogador, o raio das partidas que jogava nunca eram como nos livros. Mas qual o problema em ler e pensar sobre os hobis? Ou não ler e não pensar sobre os hobis?

A blogosfera tem funcionado bem? Tem, aí concordo. Mas, pelo menos eu, não quero proibir o anonimato. Tenho é muitissimo mais respeito pelo Miguel Silva que opina do que por nhanhanaha qualquer que também o faz. E ainda que o tal nhanhanha possa cantar bem não me encanta.

É só isso, ainda que como tese não levasse grande nota.

Desculpe o desarrumado do comentário, ainda para mais posto em post tão limpo (como é aqui norma). Mas concordando discordo imenso.

 
At 2:01 da manhã, Blogger Miguel Silva said...

Cada um destes temas dá pano para mangas.

Não sei quanto tempo passei já a tentar posicionar-me em relação à existência, ou não, de factos. Neste momento estou muito inclinado a não os negar. Uma coisa será o facto, e outra a sua interpretação. Outra ainda será a veracidade do facto. Podemos enganar-nos ou ser enganados. Mas isso não invalida que certos acontecimentos tenham ocorrido.

Regressando ao anonimato, se me colocam as coisas em termos de respeito, e não em termos de legitimidade, já pouco tenho a contestar. Cada um tem a sua versão de ética. Eu, por exemplo, convivo melhor com a dureza do que com a sobranceria. Enfim, se se falar em legitimidade da relação entre discurso e autor, estou disposto a admiti-lo. Mas se se falar, como me pareceu na divisão opinião-boca, da relação entre discurso e validade do mesmo, aí discordo. O discurso poderá ser válido, embora, então, menos legítimo do ponto de vista ético, para quem o queira ver assim.
Existem opiniões e opiniões. Existe forma e conteúdo. Não faltam exemplos de blogues anónimos com um conteúdo e uma forma inatacáveis (o Irreflexões, como quem o JMF trocou uns posts, é um deles). Mas entre dois blogues, um assinado e outro não, que escrevam umas enormidades, merece (pouco) mais crédito o primeiro.

O exercício da cidadania é manifestamente público e faz-se também no exercício da profissão. Talvez ainda mais no caso das magistraturas. É estranho separar, como eu fiz, o bloguista da pessoa por trás do bloguista. Mas eu fi-lo para demonstrar que, a ser verdade, a informação que o bloguista fornece lhe confere uma identidade. Sobre o elo seguinte, o da identificação, levantam-se outras questões, é verdade. Mas se houver coerência entre a identidade do bloguista e a identidade da pessoa, pelo menos no essencial, a opinião que se tem de um será a mesma que se tem da outra. Isto continua a não nos estabelecer um elo de responsabilidade social entre os dois. Mas eu prefiro que o magistrado X seja avaliado no desempenho da sua profissão pelo que realmente nela faz e não pelo que escreve no blogue. E se, em termos de opinião, o bloguista Y escrever o que o cidadão Y não subscreve publicamente, então o apelido molusco, entre outros, aplica-se muito bem.

Das coisas que mais me irritam nas conversas de circunstância (e nas maneiras de ser) são as variações sobre o tema "eu sou muito espontâneo, digo logo o que me vem à cabeça". Não temos todos estes milhares de anos de história da humanidade para deixarmos agora de nos reger pelas regras do bom senso e da educação, que permitem a convivência em sociedade. O comportamento humano merece ser pensado e quanto mais complexa for a questão, mais reflexão merece.

Para rematar, reformulo a sua frase: discordando, acabo por concordar com muitas ideias.

P.S.: Já foram iniciados os esforços necessários para seguir o conselho da Sophisticated Lady, e, agora, seu também. Esta semana terei certamente a oportunidade de ouvir o tema.

 
At 1:30 da manhã, Blogger eubozeno said...

A meu ver, nesta questão do anonimato vs. identificação, há que evitar simplismos redutores. Se não os evitarmos, tenhamos bem presente que é fácil construí-los para ambas as posições.

 

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