A iliteracia
Nos comentários ao post anterior, alguém me acusa de paternalismo. E adianta que "os portugueses não são tão imbecis" como eu quero fazer crer. Como um blogue também pode ser um espaço confessional, admito que posso ser mais paternalista do que gostaria. Não o digo pelo que escrevi nesse post (talvez noutros se note mais), mas porque é uma característica que reconheço possuir e que não ajuda nas relações que mantenho. Suponho até que, por vezes, haja quem sofra bastante com isso e só posso estar agradecido por ainda me tolerarem quando tenho mais um dos meus ataques.
Não sou particularmente dado a manifestações de exaltação patriótica, mas também não tenho nada em particular contra os portugueses. Não pretendo fazer dos portugueses um bando de imbecis nem penso que sejam mais ou menos imbecis do que outro povo qualquer. Nessa medida, o que escrevi sobre a falta de ferramentas para descodificar a realidade pode ser aplicado, certamente, do lado de lá da fronteira, ou em Inglaterra, ou nos EUA, etc.
Para que seja possível descodificar conteúdos é necessário que se partilhe a linguagem em que estes foram produzidos. Por exemplo, das centenas de milhar de espectadores que seguiam semanalmente os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa, quantos dominam a realidade política para descodificarem todas as alfinetadas e insinuações que caracterizavam as suas intervenções? Se não houver um conhecimento dos códigos utilizados, não é possível decifrar as mensagens. À velocidade a que os acontecimentos surgem na televisão e sem possibilidade de recapitular o que está a ser dito, quem pode assegurar que a apreensão da mensagem é fidedigna? Não se trata de uma questão de menosprezar todo um povo, trata-se de uma questão de razoabilidade.
A iliteracia dos portugueses é uma realidade, porventura, pouco divulgada. Mas é uma realidade. Em estudos realizados, a percentagem de portugueses que não consegue efectuar correctamente tarefas aparentemente simples como interpretar textos ou tabelas é assustadoramente alta. Já para não falar das constrangedoras médias que as disciplinas de Português e Matemática registam todos os anos. Seria uma insensatez considerar que quem revela tamanhas dificuldades na compreensão da língua e no raciocínio lógico-matemático possa, perante o pequeno ecrã, transformar-se num especialista em semiologia.
Mas, para que este texto não fique sem o devido suporte, nos próximos posts talvez seja possível fazer algumas incursões ao maravilhoso mundo das estatísticas do analfabetismo funcional. Desaconselhado aos espíritos patrióticos mais sensíveis, claro.
5 Comments:
Lá isso, não há situação mais irritante do que estar a ver um filme e ter alguém ao lado a "descodificá-lo" por nós. Honra lhe seja feita, caro bloguista, assume claramente a atitude paternalista que subjaz aos extintos comentários dominicais do Marcelo Rebelo de Sousa, que se esforçava por "explicar aos portugueses" o mundo - do jogo de futebol à guerra no Iraque. Desconfio sempre do excesso de pedagogia, especialmente quando dirigida a pessoas maiores e vacinadas. É o querer controlar as coisas na origem e no destino, salvaguardando uma apreensão "fidedigna" da mensagem. Se dispensamos o afã pedagógico do professor Marcelo na revelação da verdade aos portugueses, dispensamos igualmente os que nos vêm pedagogicamente lembrar a incapacidade dos portugueses em apreender a verdade dos comentários marcelistas. Vai-me desculpar, mas estamos ao mesmo nível: de um lado, os portugueses são arrebanhados numa massa informe de meninos Tonecas iluminados pelo senhor professor; do outro, os portugueses são arrebanhados numa massa informe de meninos Tonecas iletrados e iliterados, malevolamente iludidos pelo senhor professor. Mas claro que o ilustre bloguista fará o favor de iluminar, com a sua mão protectora, o pobre espírito dos portugueses - "explicará", pois, "aos portugueses" a realidade.
Podemos chamar à argumentação todos estudos sobre iliteracia deste mundo (claro que os seus resultados nos fazem pensar), o que não podemos fazer é menorizar a legitimidade cívica de uma pessoa ou população com base num défice de informação ou literacia - este é um caminho perigoso. Olhe que nacionalismo rima muito melhor com paternalismo.
Lá isso, não há situação mais irritante do que estar a ver um filme e ter alguém ao lado a "descodificá-lo" por nós. Honra lhe seja feita, caro bloguista, assume claramente a atitude paternalista que subjaz aos extintos comentários dominicais do Marcelo Rebelo de Sousa, que se esforçava por "explicar aos portugueses" o mundo - do jogo de futebol à guerra no Iraque. Desconfio sempre do excesso de pedagogia, especialmente quando dirigida a pessoas maiores e vacinadas. É o querer controlar as coisas na origem e no destino, salvaguardando uma apreensão "fidedigna" da mensagem. Se dispensamos o afã pedagógico do professor Marcelo na revelação da verdade aos portugueses, dispensamos igualmente os que nos vêm pedagogicamente lembrar a incapacidade dos portugueses em apreender a verdade dos comentários marcelistas. Vai-me desculpar, mas estamos ao mesmo nível: de um lado, os portugueses são arrebanhados numa massa informe de meninos Tonecas iluminados pelo senhor professor; do outro, os portugueses são arrebanhados numa massa informe de meninos Tonecas iletrados e iliterados, malevolamente iludidos pelo senhor professor. Mas claro que o ilustre bloguista fará o favor de iluminar, com a sua mão protectora, o pobre espírito dos portugueses - "explicará", pois, "aos portugueses" a realidade.
Podemos chamar à argumentação todos os estudos sobre iliteracia deste mundo (claro que os seus resultados nos fazem pensar), o que não podemos fazer é menorizar a legitimidade cívica de uma pessoa ou população com base num défice de informação ou literacia - este é um caminho perigoso. Olhe que nacionalismo rima muito melhor com paternalismo.
Entendo que uma das formas pela qual se revela a iliteracia nos comentários é o enviesamento dos comentários anónimos.
Passando à frente.
É evidente que a generalidade dos ouvintes de MRS não descortina a sua parcialidade,aliás comum a qq comentarista.
Todavia, mais nele porque é um dos directamente interessados no andar da coisa política. Tem aspirações e nada contra isso.
Agora acusar alguém de paternalismo, só vindo de quem paternalmente entende que tudo vai bem naquele mundo que nos convém.
Não penso que tudo vai bem no meu lado do mundo e muito menos acredito que tudo corra às mil maravilhas na outra parte...
Mesmo que, paternalmente, me digam que sim.
Parabéns pela sua análise.
Penso que estamos a desentender-nos. Não tenho qualquer prazer em ser apelidado de paternalista em posts sucessivos, por isso vamos esclarecer umas coisas:
1º Os portugueses não representam um alvo preferencial na minha argumentação. A sociedade portuguesa é aquela onde fui educado e onde vivo, portanto, aquela que conheço melhor e da qual me sinto mais autorizado para falar.
2º O formato dos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa é altamente discutível. É um facto que MRS condiciona e manipula a opinião pública nas suas intervenções. Por tudo isso é que defendi que tivessem lugar num espaço próprio. No entanto, MRS tem tanto direito a ser tendencioso como os seus espectadores a serem elucidados sobre o carácter das suas intervenções.
3º Não pretendo iluminar ninguém, nem tenho a pretensão de conseguir explicar "a realidade". O meu blogue tem mais como finalidade levar-me a compreender do que a explicar.
4º Julgo que da minha argumentação não resulta uma diminuição da legitimidade cívica de ninguém. Limitei-me a chamar a atenção para um determinado fenómeno – a iliteracia. Mas podia também ter referido as diferentes mundovisões que adquirimos durante os processos de socialização, intimamente ligadas aos modelos culturais a que estamos expostos. O que também não quer dizer, necessariamente, que uma forma de ver o mundo seja melhor que outra, ou que um modelo cultural seja melhor que outro. Defendo a participação de todos. Só assim posso assegurar que não sou também afastado. Estarei sempre contra a diminuição de direitos, liberdades e garantias. Sempre.
5º Suponho que a nossa divergência esteja precisamente na forma como vemos as coisas. Eu sou um pessimista para a actualidade, mas um optimista para o futuro. Embora frequentemente conceba cenários negativos sobre a sociedade em que vivemos, gosto de acreditar que temos condições para melhorar, para fazer as coisas de outra forma. Gosto de acreditar nisto. Mas, por acreditar em tudo isto, não quer dizer que me reveja no rumo actual dos acontecimentos. Não penso que se possa "deixar andar" por muito mais tempo sem pagar as consequências.
6º Por último, vai desculpar-me, mas quando estamos a ver um filme não há nada mais irritante do que ter alguém ao lado a comer pipocas. Isso, sim, é um suplício.
Não concordei com o epíteto de paternalista que lhe foi atirado.
Aliás apreciei a sua análise como se depreende do comentário acima.
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