quinta-feira, outubro 07, 2004

Comunicação, liberdade e democracia

Os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa estão longe de ser isentos ou ingénuos. Evidentemente, está no seu direito. As posições que assume são da sua responsabilidade e só o devem comprometer a ele.
Existem, no entanto, outros problemas. A meu ver, podem resumir-se em duas questões: a parcialidade das linhas editoriais dos meios de comunicação social e o encapotamento dessa parcialidade, travestido em supostas análises objectivas.
Estamos, também, perante um problema de literacia dos consumidores. Provavelmente, muitos dos leitores ou espectadores não possui as ferramentas necessárias para descodificar os conteúdos, para ler as entrelinhas, para separar a objectividade da parcialidade e o rigor da propaganda. É um problema recorrente na nossa sociedade e que está intimamente ligado ao sistema educativo e à própria qualidade dos serviços oferecidos nestas áreas.
Mas se é certo que nem todos conseguem destrinçar o que estão a consumir, também é notório que muitos analistas, assim como os órgãos que lhes servem de suporte, não se preocupam em contribuir para clarificar as posições. Por princípio, é mau sinal que uma boa parte dos comentadores, opinion makers e analistas seja composta por políticos. Muito pior quando alguns estão ainda no activo. Não se percebe como é que a sua objectividade se coaduna com a necessidade de defender os interesses do partido. Se isto se afigura do mais elementar bom senso para um mero consumidor, talvez não seja pedir demais que os editores também levem este pormenor em linha de consideração. Igualmente conveniente seria uma higienização do exercício do jornalismo, na medida em que os espaços de notícia se diferenciem na forma e no conteúdo dos espaços de opinião. Não se pede que os jornalistas deixem de emitir opiniões, nem sequer que não o possam fazer pelos meios que habitualmente utilizam. Mas pede-se que a opinião não habite no espaço da notícia. Em televisão existem separadores que identificam o início e o fim dos espaços publicitários, para que estes não sejam confundidos com os restantes conteúdos. Dado o elevado grau de iliteracia da população, talvez esteja na altura de pensar em adoptar modelos semelhantes para explicitar claramente a separação entre a informação e a opinião.
Por outro lado, existe ainda a questão de conhecer o alinhamento editorial dos meios de comunicação social. Se é fundamental para o exercício da democracia que exista igualdade de oportunidades no acesso à informação, quer a montante (produtores/divulgadores) quer a jusante (consumidores), isso não implica, forçosamente, que não possam existir órgãos de comunicação social alinhados com determinadas correntes de opinião política. O que é desejável, nesse caso, é que esse alinhamento seja assumido publicamente sem subterfúgios. Porque o perigo reside mais na dissimulação do que no alinhamento propriamente dito.
Não obstante, é perfeitamente ridículo que se queira fazer crer que há equilíbrio nos órgãos de comunicação social portugueses. E chega a ser patético que se pretenda fazer crer que o domínio das linhas editoriais pertença à esquerda. É um desafio tentar encontrar um nome de esquerda entre os mais mediáticos comentadores da actualidade.
O verdadeiro domínio reside sobretudo nos interesses do bloco central. O espaço está praticamente monopolizado pelas tendências dominantes da política. Não são oferecidos espaços de comunicação aos espectros mais distantes do centro, nem às vozes de organizações mais ou menos não-alinhadas com os campos políticos conhecidos.
Posto isto, seria eticamente recomendável que os órgãos de comunicação social assumissem a sua responsabilidade cívica e contribuíssem activamente para a igualdade de oportunidades. Caso não desejem assumi-lo, pelo menos que clarifiquem o seu alinhamento.
Assim, conviria que os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa correspondessem factualmente à verdade e que tivessem lugar fora do enquadramento noticioso. Mas no que diz respeito às suas considerações e opiniões, estas não podem ser senão subjectivas e, portanto, valorativas. Desta forma, caberia sobretudo à TVI criar condições de descodificação dos conteúdos do seu comentador, quer através da criação de um espaço próprio, desligado do telejornal, quer através da auscultação de outros pontos de vista.
No entanto, o que assistimos foi um ataque do governo, na pessoa do ministro Rui Gomes da Silva (mas é de supor que com conhecimento de Santana Lopes), tendo como alvo o comentador e não o canal televisivo. Por isso, ao contrário do que agora quer fazer crer, o governo atacou a liberdade de expressão de um comentador. A preocupação principal centrou-se no conteúdo do que era dito e não tanto nas condições em que era dito.
O facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter deixado as suas funções de comentador na TVI adensa a névoa deste episódio. Se o comentador tomou essa decisão somente depois de ter conversado com Paes do Amaral, é fundamental que venha explicar por que o fez. É essencial que o público possa saber se houve pressões da administração do canal ou dos seus accionistas no sentido de moderar ou afastar Marcelo Rebelo de Sousa. E se assim tiver sido, é absolutamente necessário apurar se a própria TVI foi alvo de pressões por parte do governo, ou se os interesses dos grupos que a controlam não estão a entrar em rota de colisão com a sua capacidade de corresponder à prestação de serviços que a sua licença obriga.
Esta é uma questão que se reveste de uma seriedade iniludível. Não se trata de um fait divers, pelo que convém esclarecer todo o assunto de forma a não deixar uma réstia de dúvida. Se houve realmente pressões governamentais no sentido de condicionar os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República não pode tomar outra decisão que não seja a de demitir imediatamente este executivo. Porque se isto não é um ataque à democracia, já nada é.

3 Comments:

At 10:23 da manhã, Blogger Shyznogud said...

Clap! Clap!

 
At 11:20 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Um bocadinho menos de paternalismo ficava-lhe bem: os portugueses não são tão imbecis como os pinta.

 
At 9:30 da tarde, Blogger Arlindo Costa said...

Excelente

 

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