"Senhores do Júri, a quem unicamente de forma aproximada e metafórica posso chamar meus juízes: Vossas Excelências têm a certeza de que este acto, e vós próprios, e eu, temos existência real? Encontramo-nos, segundo parece, em Castroforte do Baralla, capital da província do mesmo nome. Mas, existirá esta cidade? Os senhores devem ter à mão um mapa do país. Mandem-no examinar por um cartógrafo especialista, examinem-no os senhores. Esta província aparece lá? Castroforte aparece? E se não constam no mapa, nem nos manuais escolares, nem nos registos da Administração, como é que é possível que se tenha sublevado? Como é que é possível que eu e estes dignos cavalheiros que me acompanham no banco dos réus tenhamos cometido esse crime cuja figura o senhor Delegado descreveu magistralmente? Para que exista crime, é preciso uma base material. Não só um Quem, mas também um Como e, é claro, um Onde. Ao Quem e ao Como referiu-se o senhor Delegado bastante pormenorizadamente, mas passou por cima do Onde. Mas o Onde tem aqui uma dupla importância. Antes de mais, se Castroforte não existe, também não pode ser palco de um crime e do julgamento em que o crime é sentenciado; mas, além disso, se o crime consiste em ter proclamado a sua independência, como é que, raios, Vossas Excelências querem que se tenha proclamado independente uma cidade que não existe? Assim, não só nos falta o Onde indispensável, mas também o Como ainda mais indispensável. Vejamos agora o Quem. Ou, melhor dizendo, os Quem, porque somos quatro os acusados, criminoso plural, e atrever-me-ia até a dizer que encartado; porque foi aqui citada a Távola Redonda, e sobre ela em conjunto, e sobre os seus membros um a um, se fez recair a responsabilidade. O que é, segundo o processo, a Távola Redonda? Um grupo humano sem consistência jurídica, uma tertúlia sem estatutos e sem bases, isto é, uma coisa sem personalidade. Nestas circunstâncias, como é que se pode cometer um crime? Para se segurar bem, o senhor Juiz que fez a instrução do processo convocou os membros da Távola Redonda. A mim e a estes cavalheiros. Mas os membros da Távola Redonda não são Rafael Ruibal, Ricardo Abraldes, Jacinto Barallobre (que não compareceu), Carmelo Taboada (que também não está presente), José Luís Díaz e Emilio Salgueiro, para vos servir, mas sim Merlim, Tristão, Lançarote, Galvão, Booz e o Rei Artur. O telegrama de que somos acusados ia assinado pelo Rei Artur em nome da Távola Redonda. Mas, Vossas Excelências não reparam na primeira e grave contradição? Como é que um Rei pode proclamar a República? E, se o fizer, não será porque é um ser de ficção, e não uma pessoa real? O ser de ficção pode ser contraditório consigo próprio, pode consistir numa contradição, mas não o ser real, Vossas Excelências, estes cavalheiros ou eu. O ser de ficção, além disso, só pode cometer um crime ficcionalmente e só ficcionalmente pode ser julgado e sentenciado. Ora bem, do que se trata aqui é julgarem-nos e sentenciarem-nos a nós, que não somos fictícios, mas reais e bem reais. Ou, dito de outra maneira: o senhor Delegado, nas suas conclusões, pediu que estes cavalheiros e eu fôssemos reduzidos ao nada por causa de um telegrama que o Rei Artur enviou a Manuel Azaña proclamando a independência de uma cidade que não existe. Isto, senhores do Tribunal, a estes cavalheiros e a mim não nos parece muito sério."
Gonzalo Torrente Ballester,
A Saga/Fuga de J.B.