terça-feira, maio 31, 2005

Não? Sim.

Ganhou o Não em França. Confesso uma certa dificuldade em aceitar que não podemos passar sem algo que ainda não temos. Julgo que ou essa hipótese implica reconhecer que a UE se encontra esgotada neste preciso momento ou então se trata de um manifesto exagero. Estou mais inclinado para esta última. Até porque a primeira teria como consequência que os responsáveis políticos não souberam conduzir o processo de construção europeia, deixando-o perante uma porta fechada que necessita de 25 chaves em simultâneo para ser aberta. Não quero acreditar em tamanha insensatez. Prefiro pensar que se tem exagerado as consequências de uma não ratificação deste tratado por todos os estados.
Sou, por princípio, bastante a favor do europeísmo, do iberismo e de outros ismos que permitam dirimir convenientemente a nossa portugalidade (o nosso portugalismo?). Como se vai ver, não estamos perante o fim de nada. Pelo contrário, esta votação tem a vantagem de fragilizar, senão acabar, com os cenários catastróficos advogados por todos os que querem impor a Constituição Europeia à custa do medo e da manipulação primária. A Constituição até poderá ter mais virtudes do que defeitos, mas a forma como a estão a querer impor é reprovável. Mais vale uma integração europeia consolidada, embora lenta, do que imposta artificialmente por reformas rápidas e indesejadas.

Generation gap

Com o advento da dobragem de quase todos os documentários, gerações inteiras crescerão sem conhecer o inconfundível timbre de voz de David Attenborough.

segunda-feira, maio 30, 2005

Contributo

Se já está tudo dito, linka os textos que o dizem.

Guantanamo I
Guantanamo II
Guantanamo III

Começa a contar hoje

Vamos lá começar a pagar o défice.

quarta-feira, maio 25, 2005

Vingança

Já percebi que vou ajudar a pagar despesas para as quais não contribuí. Mas vingo-me na produtividade. Este fim-de-semana faço ponte. Aguentem-se.

terça-feira, maio 24, 2005

Julgamento de carácter

Tenho uma pessoa amiga que trabalha para uma empresa de produção de conteúdos televisivos. Está neste momento envolvida num desses programas que entretêm os telespectadores com as infidelidades dos protagonistas. Quando lhe perguntei, este fim-de-semana, exactamente em que é que consistia o seu trabalho, respondeu-me qualquer coisa como isto:

"Depois de falarmos com elas, é preciso arranjar uma desculpa para conhecer o tipo, saber se é desdentado ou se tem apresentação para aparecer no programa, saber se é cabrão, se vai cair na conversa, percebes..."

Há qualquer coisa de aterrador e desconcertante em imaginar que o carácter de uma pessoa pode ser simplesmente avaliado assim.

O seu a seu dono

Se Jorge Sampaio não tivesse acordado para a realidade no final do ano passado, teria sido muito pior: uma confusão total na atribuição de responsabilidades. Assim, temos a vantagem de poder distinguir mais facilmente as contribuições de cada executivo para o actual desastre que são as contas públicas e a economia nacional. As responsabilidades principais são dos governos de Durão Barroso e Santana Lopes, mas são também de Jorge Sampaio, que deixou esta fantochada arrastar-se desnecessariamente por mais tempo do que devia. São deles e não “nossas”. Não podem ser generalizadas a quem manifestamente não tem intervenção nenhuma neste processo. Sobretudo, não podem ser compartidas com a população em geral. Essa terá responsabilidades por estar endividada até à medula dos ossos para comprar a casa, o carro e os electrodomésticos, mas não tem responsabilidades sobre a despesa pública, ou sobre a falta de vontade para conferir poder fiscalizador à DGCI, ou sobre os negócios ruinosos e a alienação alarve do património.

segunda-feira, maio 23, 2005

A retoma foi boa enquanto durou

José Sócrates recebe hoje o relatório das contas públicas de Vítor Constâncio.

Finalmente

Vem aí a retoma!

sábado, maio 21, 2005

A educação sexual (também) pertence à escola

Em casos delicados como a sexualidade, impõe-se o bom senso. Não é, de todo, uma zona onde o experimentalismo seja aconselhável ou a boa vontade seja suficiente. A sexualidade alcança um nível muito íntimo da pessoa, pelo que deve ser abordada com o cuidado de respeitar as fronteiras definidas por cada um. Este aspecto é válido para a generalidade das pessoas, sendo as crianças um público ainda mais vulnerável.

Convém frisar desde já que embora o sexo seja algo natural, a sexualidade não o é. O sexo faz parte das ferramentas naturais de sobrevivência da espécie humana, tal como noutras espécies animais. É uma capacidade inata, comum a todos os seres humanos. Por seu lado, a sexualidade é uma das expressões culturais variáveis da espécie humana. Não pode nem deve ser confundida com o sexo. A sexualidade envolve códigos simbólicos partilhados entre indivíduos, códigos esses que definem o que é adequado e o que não o é. São aspectos que derivam dos contextos sócio-culturais e que dependem das realidades sociais específicas em que se desenvolvem. Enquanto com o sexo estamos a falar ao nível biológico, com a sexualidade falamos ao nível antropológico, sociológico e psicológico. É toda uma perspectiva de análise que se altera.

Contra a suposta naturalidade da sexualidade discorrem os mais diversos estudos antropológicos, que deixaram claro como diferentes sociedades possuíam diferentes formas de encarar as iniciações e práticas sociais. Complementarmente, pelo menos desde os trabalhos de Margaret Mead, a antropologia também é muito eficaz a demonstrar como as identidades de género variam culturalmente, deixando claro que os papéis atribuídos ao homem e à mulher diferem com o enquadramento cultural.

Por seu lado, a psicologia diz-nos que as crianças não precisam dos pais para, desde cedo, descobrirem e explorarem as suas zonas erógenas, muito embora a relação que mais tarde desenvolvem com essas experiências seja fortemente influenciada pelo contexto familiar. De igual modo, uma boa parte dos adolescentes estará familiarizada com os conhecimentos mínimos essenciais sobre sexo e sexualidade. No entanto, estes factos não impedem que a família possa intervir no desenvolvimento da sexualidade da criança. Ninguém mais do que ela terá o direito de o fazer. Nem podem impedir que a escola, enquanto local privilegiado de socialização, possa também desempenhar um papel importante neste capítulo. De resto, muito provavelmente, é com o grupo de amigos e amigas da escola que a criança mais aprende sobre a sexualidade, nomeadamente, sobre a identidade de género, sobre o namoro e sobre a relação sexual. Trata-se de uma aprendizagem salutar que tem início mais cedo do que, provavelmente, a maioria dos pais gostaria que tivesse e à qual, em regra, não podem aceder nem controlar.

A criança cedo aprende a diferenciar os estilos de intervenção consoante o local e os intervenientes. Não colocará aos pais as suas dúvidas nos mesmos termos em que as coloca aos amigos, ou aos professores, e vice-versa. Cada contexto social exige uma adequação dos indivíduos intervenientes e não se deve menosprezar a capacidade das crianças de agir em função desse conhecimento.

Se, por um lado, o papel da família na socialização é primordial, por outro, a escola detém a capacidade de compensar aspectos em que a família, por si só, não é suficiente. A família é o primeiro agente de transmissão dos modelos culturais e dos padrões normativos às crianças. A escola acaba por desempenhar também um papel muito semelhante, tendo como agentes de socialização os professores e, obviamente, os colegas da criança. A grande diferença entre professores e família é que os primeiros são agentes institucionais, ou seja, não têm o vínculo afectivo com a criança que a família possui. Já o grupo de amigos consegue desenvolver laços igualmente muito fortes, podendo em alguns casos ultrapassar a influência familiar. A vantagem que a escola introduz é a de compensar as dificuldades comunicacionais da família. Não é fácil falar de sexualidade. Mas os agentes institucionais possuem a vantagem de poder manter uma relação mais distante com as crianças, facilitando as trocas de informação. À medida que decresce o grau de afectividade, pode decrescer também o grau de constrangimento mútuo.

Esta função pode perfeitamente ser desempenhada pela família, até mesmo com grande naturalidade. Exemplos não faltarão. A educação sexual na escola não pretende substituir-se à família nem ir manifestamente contra os seus modelos valorativos. Vale a pena salientá-lo novamente: a educação sexual escolar é um complemento ao trabalho da família, fornecendo uma oportunidade para suprir dificuldades que esta possa sentir. A educação sexual faz todo o sentido dentro do meio escolar, gerida com bom senso, com responsabilidade e com respeito pela intimidade de cada um. Bem explorada, ajudará a criança a compreender as transformações do seu corpo, ao mesmo tempo que lhe incute uma maior segurança e um maior sentimento de normalidade. Em última análise, e Goffman explica isto muito bem, com o reforço deste sentimento de segurança, é a própria qualidade dos relacionamentos sociais em que o indivíduo se envolve que sai a ganhar.

sexta-feira, maio 20, 2005

Pedagogia e água benta, cada um toma a que quer

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, SETE e oito.

Não faças aos outros...

Na sessão parlamentar de ontem, Marques Guedes, ao defender o anterior governo, argumentava que estava a ser atacado o nome de pessoas que não se encontravam presentes para se defender. Se não estou em erro, essas pessoas não estão lá por uma de três razões: ou porque não se candidataram, ou porque, tendo-se candidatado, não foram eleitas, ou porque, tendo sido eleitas, não quiseram ocupar os lugares de deputados. Em qualquer caso, seria interessante averiguar quantas vezes, nestes três anos e meio, Marques Guedes e os seus colegas de bancada revelaram tanto recato em relação aos membros dos governos de António Guterres quanto o que agora exigem.

Do desenho à fotografia

Não sei se esta gente que se indigna com uns desenhos infelizes é a mesma que queria impingir às crianças fotografias de fetos abortados.

É altamente recomendável a leitura dos textos do Luís n’A Natureza do Mal (1, 2, 3)

quinta-feira, maio 19, 2005

IVA

O Irreflexões aponta quatro razões para recusar o aumento do IVA para os 21%. Considerando-as a todas tão simples quanto razoáveis, não estaria na altura de arriscar cumprir a promessa de Durão Barroso e aplicar antes um choque fiscal, fazendo o IVA regressar aos 17%? Não seria essa uma medida bastante positiva para a competitividade das nossas exportações, ao encontro do caminho que têm defendido vários especialistas para a revitalização económica nacional?

quarta-feira, maio 18, 2005

Verdades nacionais

Em vez de um empreendimento turístico rodeado de árvores, a eterna opção por uma árvore rodeada de empreendimentos turísticos. Não se aprendeu nada com o Algarve.

Deus existe?

O resultado de logo vai decidir-se no difícil equilíbrio entre o imperativo divino de fazer felizes os putos de 18 anos que o merecem e a necessidade premente de deixar claro que o Peseiro é muito mau treinador.

Desejo

Uma pessoa com um blogue com este nome não deve muito àqueles sentimentos a transbordar de patriotismo bacoco. É por isso que, logo à noite, quando estiver a torcer furiosamente pelo Sporting, não vai ser a elevação das capacidades nacionais que me vai fazer saltar da cadeira. Vai ser, antes, o desejo de que esta oportunidade se transforme num dos acontecimentos mais agradáveis para o meu pai e o meu irmão guardarem na memória.

terça-feira, maio 17, 2005

Sinais

Começo a óbvia a impressão de que o governador do Banco de Portugal foi incumbido da ingrata tarefa de sondar o país para o que aí vem. Hoje já se fala em cobrar portagens nas SCUTS e na peregrina ideia de aumentar o IVA para 21%, sem esquecer as inevitáveis reformas ou os subsídios de desemprego. Aqueles que protestarem menos já sabem o que os espera.
Dito isto, é evidente que a situação não pode continuar como está. Mas uma realidade também não invalida a outra.

segunda-feira, maio 16, 2005

Contas de cabeça

A justiça social da aplicação de uma taxa única aos rendimentos auferidos é coisa que me escapa. Não percebo, confesso. Deve ser de mim, claro, mas quer-me parecer que quanto mais uma pessoa ganha, mais lhe sobra para viver. Dito de outra forma, se, em termos relativos, a taxa única retira o mesmo a toda a gente, por outro lado, não é necessário tirar um curso de Economia para perceber que, em termos absolutos, os X% de contribuição dos salários mais baixos pesam muito mais nos orçamentos familiares do que os X% dos salários mais altos. É só fazer contas.

De regresso

Ora deixa lá ver... acho que era neste botão cor de laranja que se clicava...

(Ok, ok, não passou assim tanto tempo.)

quarta-feira, maio 11, 2005

Esclarecimento

Alertado para o facto de o post anterior se prestar a interpretações dúbias, aproveito para esclarecer que este blogue não terminou e que o regresso está mesmo para breve.

terça-feira, maio 10, 2005

Move along, there’s nothing to see here

quinta-feira, maio 05, 2005

Prioridades

Está a ser um dia blogosférico razoavelmente agitado, mas o mais importante é que está uma bela tarde para namorar. Hoje, não me apanham mais aqui.

Ontem e ante-ontem (II)

Via Rua da Judiaria, chego à Infância Perdida, no Povo de Bahá.

Sobre o direito de fornicar

O que perpassa no post Sobre o direito de fornicar meninos é uma apologia do carácter natural da heterossexualidade e, por consequência, uma noção de carácter contra-natura da homossexualidade. Isso está bem patente na seguinte passagem:

"A ideia de que os actos homosexuais são iguais aos actos heterosexuais ou que, por exemplo, uma relação entre um adulto do sexo masculino e uma menor do sexo feminino é igual à relação entre um adulto do sexo feminino e um menor do sexo masculino é muito própria da esquerda bem pensante para quem a natureza humana é infinitamente moldável."

Os termos em que a hipótese é avançada podem ser revertidos para demonstrar que, mais do que uma alegada tendência da esquerda para considerar a natureza humana infinitamente moldável, o que é proposto, de forma implícita, é uma tendência para reduzir a natureza humana a duas formas pré-definidas: a heterossexualidade e a hipervaloração masculina. Ou seja, o que se vislumbra nestas linhas é uma visão não só sobre a sexualidade, mas também sobre a masculinidade e a feminilidade. Transparece aqui uma ideia de negação da mulher como sujeito activo num relacionamento sexual, ou, pelo menos, nunca tão activo como o homem. De outra forma, não se compreende como é uma relação entre um adulto do sexo masculino e um menor do sexo feminino é diferente de uma relação entre um adulto do sexo feminino e um menor do sexo masculino. E se o João Miranda considera que uma mulher não é capaz de violentar um rapaz com a mesma violência que um homem violenta uma rapariga é porque nunca teve acesso a esse tipo de relatos, ou então saberia que o grau de crueldade e de violência não está necessariamente relacionado com o sexo do agressor.
Verdade se diga, não falta quem pense que a homossexualidade só pode resultar de um defeito genético, de uma socialização deficiente, ou de uma depravação incontrolável. É comum o raciocínio de que “algo não deve estar bem”. Esta forma de pensar a sexualidade radica num biologismo desajustado do ser humano enquanto ser cultural. Não pretendo negar a pulsão sexual, mas argumento que a vertente cultural do ser humano o afasta, desde há muito tempo, de determinismos biológicos. Aliás, uma vista de olhos rápida pela História da sexualidade revela uma multiplicidade de sexualidades ao longo dos tempos. Dito de outra forma, a sexualidade sofre uma variação sócio-histórica iniludível. Na realidade, o sexo tem muito pouco de natural, de tal forma é condicionado pelos modelos culturais das sociedades. É preciso martelar nesta realidade até que se deixe de considerar que a orientação sexual é uma diminuição da integridade humana da pessoa.

quarta-feira, maio 04, 2005

Ontem e ante-ontem



Francisco Goya, O Dois de Maio de 1808, 1814





Francisco Goya, O Três de Maio de 1808, 1814

segunda-feira, maio 02, 2005

A dificuldade de chamar as coisas pelos nomes

Já agora, foi também no Blasfémias que fiquei a saber que Vasco Rato acredita que a 25 de Abril de 1974 o regime autoritário implodiu. Foi um momento didáctico notável. Até hoje, sempre tinha pensado que nessa data se tinha dado uma revolução contra um regime ditatorial. O esforço de algumas pessoas para negar o carácter revolucionário do golpe militar de Abril e o carácter ditatorial dos regimes salazarista e marcelista chega a ser anedótico.

Sobre o artigo 175º

Através do Irreflexões cheguei a um post no Blasfémias sobre a sentença aplicada no caso de pedofilia julgado nos Açores. Neste último, insurge-se o João Miranda contra a decisão do tribunal de não aplicar o artigo 175º, que consagra pena de prisão por actos homossexuais de relevo com adolescentes, ao entender que viola o preceito constitucional de não discriminação em função da orientação sexual. Entende o João Miranda que o artigo 175º não existe para segregar a homossexualidade, mas sim para defender as vítimas, pelo que a decisão judicial é reprovável. Infelizmente, este é só um dos lados da questão.
Levanta-se, desde logo, o problema de saber, em concreto, o que são actos homossexuais de relevo. Admitindo a interpretação de Carlos Loureiro, serão aqueles que não se encontram previstos no artigo 174º, ou seja, aqueles que não se caracterizam pela cópula, pelo coito anal ou oral. Como Carlos Loureiro não vai mais longe na sua interpretação, ficamo-nos pela imaginação para definir os actos sexuais de relevo que não se incluem nos já citados.
O problema com a argumentação de João Miranda é que se limita a considerar o dano provocado à vítima, partindo do princípio de que, numa sociedade culturalmente de pendor heterossexual, o abuso homossexual acarreta consequências mais marcantes para a vítima. No entanto, as leis criminais não respondem apenas aos danos provocados às vítimas. Existem também para ressarcir a sociedade naqueles aspectos em que ela se possa sentir ofendida. Portanto, no mínimo, deve admitir-se que uma lei ou um artigo deste género são redigidos como reacção a um sentimento social de desconforto com o acto homossexual, sentimento que é transmitido para a legislação que abarca os abusos sexuais.
A questão de saber se, pelo facto de um meio social se sentir mais incomodado com o abuso homossexual do que com o abuso heterossexual, o dano resultante para a vítima de abuso homossexual ser também superior não perde relevo, mas deve ser bem enquadrada. Pessoalmente, considero que o dano causado à vítima de um abuso sexual é suficientemente significativo para que nos percamos com preocupações de estilo. Porque, de facto, argumentar que o dano do acto homossexual de relevo só não é maior se o abusado tiver uma orientação homossexual definida é quase o mesmo que dizer que uma pessoa gosta um bocadinho mais de ser abusada por algumas pessoas do que por outras. É redutor, preconceituoso e ofensivo.
A violência psicológica, mais que a física, deixa sequelas duradouras que afrontam a identidade da vítima, funcionando como um choque ontológico capaz de abalar a estrutura da identidade pessoal e social. O abuso sexual é uma das formas que mais gravemente atenta contra a integridade individual. É, justamente, alvo de repugnância social generalizada. Mesmo dentro do meio prisional, é um comportamento extremamente mal visto pelos reclusos, sendo comuns acções de represálias contra os condenados por crimes sexuais. Perante uma realidade tão traumática para as vítimas, parece elementar que o dano causado seja determinado na especificidade de cada caso, e não de forma arbitrária, ao mero sabor da "sensibilidade" do legislador. As implicações traumáticas do abuso devem ser apuradas em tribunal, recorrendo ao auxílio de técnicos especializados e de competência reconhecida. Partir do princípio de que a natureza dos actos de abuso determina o dano causado é simplista e, em última análise, pode mesmo beneficiar o abusador. A máxima "cada caso é um caso" faz particular sentido nestes campos e, por isso, o artigo 175º, da forma como o entendo, apoiado no que escreveu Carlos Loureiro, deve ser revisto para passar a incluir os actos heterossexuais de relevo. Dessa forma, não só deixará de ser possível entrever um certo preconceito no artigo, como se terá um instrumento de protecção bastante mais amplo.