Num país com poucas referências culturais significativas, não surpreende que um fenómeno como o futebol ganhe a dimensão que actualmente tem. O futebol é aparentemente fácil e suficientemente imediato para ser debatido por virtualmente toda a gente que lhe preste um mínimo de atenção. Desta maneira, toma o lugar de uma das principais referências para uma vasta maioria da população. Os adeptos identificam-se com o seu clube, com as suas façanhas, com as suas agruras e com as suas travessias do deserto. Sabem a história, sabem os nomes e sabem as finanças. Discutem tudo, desde a política de contratações aos aumentos de capital. Possuem, inegavelmente, um campo onde a informação, mesmo que incompleta, distorcida ou manipulada, chega em doses maciças, pronta a ser processada. Não há tema que consiga rivalizar com o apelo do futebol, apresentado em todo o seu
glamour, transpirando competição, dinheiro, fama e promessas sucesso.
A necessidade humana de pontos de referência é, por cá, colmatada pela adesão ao clubismo. Uma boa parte da população, quer siga atentamente o desporto ou não, desenvolve uma relação de preferência mais ou menos profunda com algum clube. E não é certamente por acaso que as principais referências se resumem basicamente a três clubes. Também aqui se pode aferir o reduzido número de alternativas. O sistema foi e continua a ser carinhosamente complacente com o triunvirato de sempre. O estatuto extraordinário concedido ao futebol é particularmente notório nas benesses concedidas especialmente aos ditos três grandes. Ajudas para lá do limite do razoável que se destinam a alimentar o monstro, porque ninguém sabe para onde se virariam as atenções caso o futebol deixasse de ser o centro do mundo.
Numa sociedade que regista níveis insuficientes nas habilitações académicas, na qualificação profissional e no alfabetismo funcional, não se pode esperar que os modelos referenciais adquiram grande complexidade. Com instituições socializadoras ainda fortemente condicionadas pela herança do Estado Novo, o resultado só poderia ser o que se tem à vista. Os graus de exigência são baixos, as expectativas e os objectivos alcançados são, quase invariavelmente, baixos. Salvam-se algumas honrosas excepções, que assumem a forma de profissionais brilhantes ou de mega-acontecimentos extraordinários, e que vão, a espaços, fornecendo injecções de ânimo nas massas. Mas a grande consequência social desses 48 anos, que está a ser paga pelas actuais novas gerações, são modelos de socialização desajustados das necessidades inerentes às condições actuais da realidade social. Modelos que, durante meio século, promoveram o conformismo, o compadrio e a oligarquia.
Com a promoção de tais modelos, não é de admirar que as consequências se façam sentir em vários sectores, desde a Administração Pública ao sector privado, passando, claro, pelo ensino, onde é sempre mais fácil atirar as culpas para os alunos, como se os maus desempenhos e o desinteresse surgissem de geração espontânea, desenquadrados dos contextos sociais, culturais e económicos em que na verdade radicam.
O meio escolar e o meio profissional estão orientados para uma divisão social do trabalho, fornecendo igualmente referências para a identidade social dos indivíduos. Sem possibilidade de adquirir referências nestes meios, torna-se necessário que se encontrem as matrizes referenciais substitutas. Assim sendo, com as fracas habilitações académicas somadas à desqualificação profissional, qualquer indivíduo se esforçará por encontrar outros meios de construção e valorização da identidade social. Em Portugal essa função é suprida por dois fenómenos de uma forma muito especial. Um já foi aflorado, tratando-se do futebol. O outro é o consumo.
O consumo contribui para a satisfação não só das necessidades básicas como também para a definição da identidade social, numa vertente de diferenciação ontológica. Algo que se pode sintetizar na fórmula: diz-me o que consomes, dir-te-ei quem és. O indivíduo que se vê sem uma referência que o defina num campo académico ou profissional, quer seja pelas limitações no primeiro ou pela desmotivação e desqualificação do segundo, encontra-se numa situação socialmente frágil, em que precisa de se definir, tanto para si como para os outros. O consumo funciona então como um auxílio precioso, uma vez que essa pessoa se pode passar a definir pelo que consegue e escolhe comprar.
Dentro dos inúmeros bens de consumo, um dos mais notórios é seguramente o automóvel. A importância do automóvel enquanto símbolo social, com todas as suas
nuances, é perceptível no universo das representações sociais construído à sua volta. As marcas e os modelos estão associados à performance, à aventura, à fiabilidade, à segurança, etc. Quando se compra um automóvel, compra-se uma imagem, um símbolo, e, em certa parte, uma identidade à qual se quer ver associado.
Um aspecto ilustrativo destas combinatórias de identidade social é o
tuning. Este é um fenómeno característico, sobretudo, de estratos sociais mais baixos, onde a qualificação académica e profissional é menos provável. Assim, em grupos sociais onde a diferenciação social entre os seus membros não é muito significativa, o automóvel, singularizado e particularizado ao máximo pelas transformações estéticas operadas, constitui um instrumento de diferenciação da identidade social do seu proprietário.
Sendo este um caso paradigmático, não se pense que o poder do automóvel enquanto símbolo se esvanece à medida que subimos na estratificação social. Simplesmente, esse símbolo é apercebido de outras formas e complementado com outros símbolos, quando existentes.Nesta óptica, é compreensível o que se passou com o episódio da bandeira nacional. Como se pôde constatar, as bandeiras desapareceram primeiro das viaturas e só mais tarde das janelas das casas. A leitura que se pode fazer é que o automóvel vale tanto como símbolo por si só que chega a suplantar o simbolismo da casa, sendo difícil para o seu possuidor imaginá-lo mesclado com outros símbolos, sobretudo se não servirem para realçar a sua singularidade. A particularidade do futebol e do consumo que foi referida anteriormente é especialmente notória se considerarmos que tanto um como outro servem para diferenciar. O que é relativamente fácil de compreender no caso do consumo também se torna claro no caso do futebol quando nos apercebemos que a escolha do clube X implica, quase automaticamente, uma oposição aos clubes Y e Z. É pois com bastante curiosidade que se constata que esta lógica de diferenciações foi subvertida precisamente quando o automóvel se associou ao futebol. A bandeira nacional, que na verdade não simbolizava outra coisa que não a selecção nacional de futebol, ao mesmo tempo que ornamentava o veículo, servia como factor de coesão. Mas, para que não se pense que não existe aqui igualmente um reverso da medalha, esta coesão social deu-se à custa de uma outra diferenciação. Os portugueses “uniram-se” para afirmarem a sua diferenciação perante os quinze grupos nacionais tidos como adversários. O conflito latente e a necessidade de definir diferenças não afrouxam.