Foi ontem adiado o cara-a-cara entre testemunhas e arguidos no chamado processo Casa Pia, envolto em renovada polémica pela decisão de última hora do juiz Rui Teixeira de optar pela videoconferência, seguida do pedido de substituição do juiz apresentado pelos advogados de defesa invocando falta de imparcialidade. Depois do Abrupto ter elegido como acontecimento de maior importância dos últimos dias um acto anónimo de desinformação a circular na blogosfera e do que nela se tem dito, parece-me importante acrescentar umas ideias. Concordo que as cartas anónimas pecam pela cobardia e que, sobretudo neste caso, pela forma como tem vindo a ser conduzido e pelo aproveitamento mediático, político e social a que se presta, não se deve dar seguimento ao tipo de argumentação desenvolvido por gente incerta. No entanto, parece-me útil reflectir sobre as consequências que este caso acarreta para o sistema judicial português e, por consequência, para a própria Democracia.
Parto do princípio de que o Estado português é capaz de providenciar um sistema de justiça suficientemente independente e sério, capaz de julgar os casos que se lhe apresentem com isenção e rigor. Parto desse princípio porque nunca me foi facultada qualquer prova de que assim não seja, antes pelo contrário. Portugal é um país democrático onde o sistema judicial está separado do sistema político, executivo, militar ou religioso. Evidentemente, o sistema é falível, quer seja por falhas que provêm da organização e estruturação do mesmo, quer seja por falhas individuais dos seus executantes. Estas últimas podem estar relacionadas com a incompetência de alguns profissionais, com a falta de sentido de dever e de responsabilidade de outros, ou podem estar relacionadas com episódios de corrupção de algumas partes envolvidas. De qualquer forma, não tenho quaisquer indicações que o fenómeno seja generalizado e que ponha em questão a credibilidade da Justiça portuguesa como um todo.
Tenho bem presente que a morosidade na resolução dos processos afecta seriamente a imagem da Justiça e pode chegar mesmo a comprometer o sentido da palavra quando, por exemplo, se aguarda perto de uma dezena de anos por uma decisão. Sei, também, que este aspecto prejudica a própria economia do país, com todas as despesas que se relacionam com a Justiça e com a imagem que se veicula para os investidores, sobretudo para os estrangeiros. Julgo, apesar disto, que não se deve confundir os defeitos, que evidentemente existem, com um cenário generalizado de injustiça ou de ausência de justiça. Não é essa, de todo, a nossa realidade.
O processo Casa Pia, pelo melindre de que se reveste, pela mediatização em que está envolvido, pelos nomes que movimenta e pelos sectores sociais a que esses nomes estão ligados, condensa diversas características que poderão colocar em questão o poder judicial como nunca depois de 1974 se terá visto.
A exposição mediática que tem sido constante desde o início, familiarizou os portugueses com os contornos básicos do escândalo e da investigação que se lhe seguiu. Espera-se, por isso, talvez mais que nunca, que o processo chegue a conclusões definitivas que se prestem pouco a interpretações ambíguas. Assistimos, no entanto, a focos de desinformação descarada e a maus exemplos de exploração noticiosa e sensacionalista por parte de quem está de fora. Assistimos, também, a medidas judiciais que os leigos não compreendem e que aqueles que desconfiam de quem passa o dia a trabalhar fechado em gabinetes, atrás de secretárias, em assuntos de domínio tão restrito, se apressam a classificar de incompetentes ou erradas. Recordo que, para a maioria de nós que não dominamos os meandros da Lei, não existe capacidade para discutir com fundamento as resoluções judiciais. Para isso existem os peritos e limitamo-nos a depositar neles e na sua perícia a nossa confiança. Giddens explica isto melhor.
Por outro lado, neste processo existem arguidos para todos os gostos, que é o mesmo que dizer que uma grande maioria dos portugueses encontrará razões para sentir afinidades com algum deles nalgum momento do processo. O leque de arguidos envolve, só para referir os mais mediáticos, um político e ex-governante, um apresentador de televisão, um diplomata, um médico e um advogado. Para além do já tristemente célebre Carlos Silvino, claro. Ou seja, junta-se a política e a governação, o entretenimento televisivo, a diplomacia, o campo da medicina e a advocacia, estritamente ligada ao campo da Justiça. Temos, assim, diversos sectores da sociedade envolvidos, sectores esses com uma expressão ou relevância incontornável.
Ora, num cenário em que a Justiça se presta a ser muito mais injustiçada do que merece, qualquer condução de um processo tão mediático e importante como este que não se aproxime da perfeição arrisca-se, aos olhos de uma larga franja da população, a descredibilizar não só a investigação e o julgamento do caso em si, mas também, por arrasto, todo o sistema judicial.
Se se titubear, se o processo não for o mais transparente e inteligível que puder ser, se, no pior cenário, se verificarem erros de conduta que comprometam o apuramento cabal de responsabilidades, estão criadas as condições para que um largo número de cidadãos interprete todo o processo como uma charada colossal e encontre no sistema judicial o símbolo perfeito da incoerência e o fiel depositário da desconfiança nacional. Ainda que, obviamente, não o seja. Mas importa compreender que existe uma grande diferença entre o que uma coisa objectivamente é e a representação subjectiva que sobre ela as pessoas constroem. E se vingar no colectivo português a representação de uma Justiça incapaz é a própria Democracia que fica em causa, porque esta última estará tão ferida nos seus princípios como a primeira enquanto durar tal concepção. Porque uma é pilar fundamental da outra. E, devido à mediatização e ao envolvimento de tantos sectores da sociedade, não se prevê que essa ideia, uma vez enraizada, se dissolva, pelo menos enquanto não se renovarem as gerações ou o próprio sistema judicial não dê provas, num caso igualmente mediático, de se ter recuperado. Até lá, ficarão a ganhar todos os que fazem da ilegalidade e da desonestidade um modo de vida.
Evidentemente que os media desempenharão um papel fundamental para o desfecho desta história, mas isso é assunto para merecer outro post.