terça-feira, setembro 28, 2004

O PS de Sócrates

O Carlos Alves, no Ideias Soltas, faz uma análise à margem de manobra de José Sócrates no PS após a vitória que obteve. Diz o Carlos que é pouco provável que Sócrates não vá de encontro aos interesses dos seus apoiantes, mas que a margem que possui é tão confortável que lhe pode permitir independência até para adoptar linhas programáticas que se demarquem desse apoio que recebeu.
Parece-me que, apesar de esta hipótese ser viável em abstracto, Sócrates não cometeria o erro e a desfaçatez de renegar os importantes apoios do aparelho. Tão desconfortável como estar manietado por este, é tê-lo como inimigo. No fundo, acaba a ser uma regra de bom senso e coerência. Sócrates não vai morder a mão que o alimenta (pelo contrário, deve até acarinhá-la), nem vai distanciar-se do rumo ideológico que o caracteriza. O recém-eleito secretário-geral, apesar do que disse na campanha, não é um homem muito dado às esquerdices. É antes um convicto adepto do pragmatismo centrista e devem ser esses os caminhos que o PS vai trilhar nos próximos anos. Os primeiros sinais já foram dados no sentido de impor, desde logo, disciplina interna e condicionar as eventuais oposições. Esperemos, então, para ver como se vai processar a integração das outras candidaturas neste PS.

Justicite (2)

Muito pior estaremos se este espírito justiceiro chegar às salas dos tribunais na pessoa dos juízes. Boaventura Sousa Santos tem sido dos mais atentos aos problemas da Justiça e, quer em artigos de opinião, quer em obras publicadas, já traçou um panorama preocupante da situação. Juízes mal preparados, processos de admissão à magistratura inadequados e falência funcional do sistema administrativo são alguns dos aspectos mais notórios. Para quem contacte com o sistema judicial não faltarão, certamente, bons exemplos disso. Mas somente um número muito restrito destes reúne as condições necessárias para ganhar visibilidade, como na novela Casa Pia, ou no mais recente caso do despiste e atropelamento mortal em Palmela.
Julgo que não há indicadores fiáveis disponíveis para se saber a real dimensão do problema, nomeadamente, no que diz respeito à deficiente preparação dos magistrados. Na Justiça, como em tudo, é tão injusto querer julgar a floresta pela árvore como certo que as rotten apples contaminam a fama das sãs. A particularidade é que, sendo este um pilar fundamental do Estado de Direito democrático, qualquer rotten apple é uma fissura intolerável no edifício. Posto isto, a avaliação profunda da Justiça, como a da Saúde e a da Educação, é inadiável e deve dar origem a todas as alterações julgadas necessárias.

Justicite

Não há qualquer interesse em ver a cara de presumíveis homicidas. Não existe, de facto, nenhuma vantagem em conhecer-lhes as caras, por mais hediondos que sejam os crimes cometidos. Muito menos essa divulgação pode legitimamente fazer parte de uma peça noticiosa. Os suspeitos, ou arguidos, ou condenados, tanto faz, têm direito à sua privacidade. Já não bastava o sensacionalismo atroz que pulula nos noticiários, temos agora o justiceirismo jornalístico.
O respeito exige-se, mas faz-se também por merecer. As instâncias da justiça não podem servir apenas para serem instrumentalizadas à medida do interesses da acusação, dos acusados ou da cobertura pela comunicação social. Não salvaguardar o direito à privacidade dos suspeitos é fazer crescer exponencialmente o grau de estigmatização que a própria acusação já acarreta, sem falar do que surge com a hipotética condenação.
Pode-se afirmar que há crimes e crimes, que colher a vida de três jovens em corridas pelas estradas nacionais é imperdoável, que matar crianças não admite relativismos e é sinal da decadência dos valores da sociedade. Mas a verdade é que o crime é uma realidade inerente à sociedade. Não há sociedades sem crime, simplesmente porque não há sociedades sem regras. Enquanto houver regras, haverá quem as quebre, por muito chocante que o acto seja. Aliás, quanto mais chocante (desviante) for o crime, menor é a probabilidade que ocorra. E depois, a decadência de valores da sociedade não está tão patente no crime como nas respostas que lhe são dadas, como, por exemplo, na forma como é noticiado. Quando a falta de rigor, de objectividade e de escrúpulos chega a um meio com a importância da comunicação social, quando o apelo subtil à justiça popular tem lugar no horário nobre, dentro dos noticiários televisivos, aí sim, podemos ficar preocupados. Porque essa é a essência da perversão dos direitos e das garantias. Se os sectores mais influentes de uma sociedade não são capazes de estabelecer uma linha de fronteira e cedem com esta facilidade, dificilmente podemos afirmar que temos Justiça, essa mesmo, a que se escreve com letra grande. E o Estado de Direito Democrático também não andará de muito melhor saúde.

segunda-feira, setembro 27, 2004

Deve ser isto a Esquerda Moderna

"José Sócrates (...) foi recebido por várias dezenas de militantes e muitos aplausos. Na primeira fila do público encontravam-se António Costa, Jorge Coelho, Vitalino Canas, Edite Estrela, Jaime Gama, Sérgio Sousa Pinto, Capulas Santos, Armando Vara e Miranda Calha."

in Público

Para os mais desatentos

Voltou. Inevitavelmente, já está na coluna dos links.

As motivações dos eleitores

Confesso que desisti de comprar o Expresso há uns meses, pelo que este post é exclusivamente baseado na informação disponível no post 1929 do Bloguítica. O Paulo que me corrija se eu estiver enganado, mas a argumentação que utiliza é claramente contraditória com a análise que se pode fazer da respectiva sondagem do Expresso. O Paulo diz que o discurso de Manuel Alegre colhe menos apoios fora do PS, mas a sondagem parece contradizer esta teoria.
Na minha opinião, os universos não são realmente equiparáveis. Não se pode extrapolar resultados do grupo de militantes para o de simpatizantes/votantes e vice-versa. São realidades sociais distintas, há muitos interesses (sem conotação pejorativa) diferentes, muitas relações de poder, de identificação e de influência que não são, de todo, comparáveis. Mas se tivesse que arriscar, diria que é exactamente o contrário do que o Paulo argumenta. O PS, neste momento, com esta conjuntura, aparenta estar muito menos receptível a uma candidatura como a de Manuel Alegre. As razões são simples: Sócrates é, há muito tempo, apontado como um dos mais prováveis nomes do partido com capacidade para ganhar as legislativas. E estas coisas vão-se sedimentando no imaginário do eleitorado. Mais ainda quando se trata do eleitorado militante de um partido. O que está aqui em causa é uma atracção pelo poder, à qual não será indiferente o facto de o aparelho (igualmente sem conotação pejorativa) ter apoiado em massa a candidatura de José Sócrates.
Aliás, esta poderá ser a explicação para João Soares ter atingido números tão baixos. A sua candidatura foi, desde sempre, apontada como pouco credível, não-ganhadora, para marcar terreno interno e sem pretensões verdadeiras de vitória. João Soares, pelo menos nos últimos tempos de campanha, ainda tentou inverter esta visão, repetindo diversas vezes a vontade de levar até ao fim a candidatura, adoptando um discurso de vitória, talvez mais que a própria candidatura de Alegre, que, por sua vez, a certo ponto dava a entender a impossibilidade de vitória e começava a preparar terreno para minimizar a derrota. São exemplos disso todas as referências de Alegre à irredutibilidade do movimento ao processo eleitoral e ao capital de transparência, não só ideológica, mas também de prática partidária.
Por estes motivos, o mais provável é que o eleitorado que não milita no PS, mas que se revê numa ideologia política suficientemente próxima para se afirmar votante, esteja mais receptivo a clarificações ideológicas (felizmente, julgo que isto seja real também para o eleitorado de outras forças políticas). Pode concluir-se que não são as posições ideológicas mais definidas que afastam o eleitorado, mas sim os unanimismos e o centrismo político, a noção de que, mais coisa menos coisa, “é tudo igual”. A política indefinida, titubeante e ziguezagueante tem mais razões para desmotivar o eleitorado do que uma orientação mais à esquerda do PS. Até porque ninguém no seu perfeito juízo pensa que com Manuel Alegre, ou com João Soares, ou com Ferro Rodrigues, o PS se transformaria numa força de extrema-esquerda e faria regressar as nacionalizações, a reforma agrária, o PREC e sabe-se lá que mais. Mas, por outro lado, com Sócrates sabemos que vamos ter um PS muito mais perto do PSD. Se José Sócrates não tiver aprendido estas lições, não chegará sequer a atingir o estado de graça que Guterres alcançou.

As eleições do PS

A vitória de José Sócrates não sofre contestações. A escolha dos eleitores foi clara e confere-lhe uma margem de manobra muito confortável para moldar o PS à sua imagem. É de esperar uma reedição do guterrismo, mas com o estilo de José Sócrates. O que quererá dizer que talvez haja menor abertura ao célebre diálogo que caracterizou a direcção de António Guterres e maior capacidade de decisão. No entanto, aguardam-se as primeiras medidas para perceber onde vai ser traçada a linha de orientação. Sócrates, que tem fama de ter uma “personalidade difícil”, talvez não seja tão conciliador como Guterres chegou a ser. Mas vai precisar de muita força para resistir à tentação de navegar à vista das sondagens de popularidade. E vai precisar de muito trabalho para transformar a sua imagem mediaticamente apelativa em conteúdo político.

Por seu lado, o resultado da candidatura de Manuel Alegre fica aquém das expectativas. Os números são tão pouco expressivos que é provável que as intenções manifestadas pelo candidato de dar continuidade ao movimento criado não possuam fundamentação. A constituição de grupos de reflexão organizados pode não ter acolhimento junto das bases do partido. Tendo a candidatura de Alegre a fama de ter nascido de uma congregação de notáveis, poderá afastar muitos militantes que têm uma concepção pejorativa da política feita por intelectuais, sobretudo agora que o partido está sob a liderança mediática de José Sócrates. Na realidade, o espaço de relevo que a esquerda do PS vai ocupar dentro do partido vai depender muito da vontade da nova direcção. Se Sócrates fechar as portas, a esquerda do PS fica em stand by, à espera de melhores dias.

O grande derrotado é, sem dúvida, João Soares. O resultado é de tal forma decepcionante que talvez tivesse sido sensato optar pela desistência. Mas, pelo menos, tem a mais valia de ter levado até ao fim aquilo a que se propôs. É mais do que muita gente na política pode afirmar. Não falta já quem coloque em causa o seu futuro político e até parece razoável que estas interrogações surjam. Mas talvez ainda seja cedo para se vaticinar o encerramento do ciclo soarista no PS. Subestimar o peso e a influência da família Soares é uma precipitação. Para mais, em Portugal ninguém morre politicamente. Mais cedo ou mais tarde, todos renascem, mesmo das cinzas mais antigas.

Com José Sócrates, a ideologia do PS vai, sem surpresas, passar a ter uma orientação mais centrista, o que é um bom eufemismo para não assumir uma viragem à direita. A diferença em relação ao guterrismo, neste aspecto, pode passar por uma maior liberdade em relação à influência da Igreja. Se, do ponto de vista económico, se pode esperar um PS mais à direita, do ponto de vista social, talvez se possa esperar um PS mais independente e progressista.
Outro aspecto importante é que o PS vai ficar mais parecido com o PSD. Não só na aproximação (friso: aproximação) no campo da teoria económica, mas também na eventual desideologização do partido. Na realidade, o PS de Sócrates apresenta uma enorme vocação de poder, de uma forma que talvez ainda não se tivesse assistido, nem mesmo com Guterres. Perante a promessa de vitória da candidatura de Sócrates, o partido respondeu de forma esmagadora. O aparelho mexeu-se num só sentido e os militantes foram sensíveis ao apelo. Com Sócrates, o PS está preparado para se orientar exclusivamente para as vitórias eleitorais. O que não é necessariamente bom, nem para o exercício do poder, nem para o sistema democrático, nem sequer para o PS.

sexta-feira, setembro 24, 2004

O Estado é naturalmente mau?

Um dos principais papéis do Estado é gerir e compatibilizar os diversos interesses da sociedade, controlando, para esse efeito, somas astronómicas de dinheiro, das quais a maioria dos mortais só é capaz de ter uma noção distante e abstracta. Por isso, é natural que na sua órbita gravitem não só os legítimos interesses da sociedade, mas também os corporativismos e os poderes mais ou menos ocultos.
A máquina do Estado é inegavelmente pesada, o que pode seguramente derivar de uma deficiente organização. Do orçamento que gere, muito é gasto consigo mesma. No entanto, por muito má que seja a organização do Estado, é impossível que este opere sem funcionários. Alguém tem de prestar os serviços que o Estado disponibiliza. Haverá certamente quem argumente que o Estado não tem vocação para a prestação de muitos dos serviços que actualmente estão sob a sua tutela. Embora esta ideia seja muito mais que discutível, por ora, e porque essa refutação não é o propósito deste texto, bastará afirmar que o Estado, e, entre outras coisas, os serviços por ele providenciados, contribuem definitivamente para a formação de uma identidade nacional, princípio tão caro a alguns dos seus mais fervorosos detractores.
O que está aqui em questão é, sobretudo, a relação que estas despesas têm com a sua má organização e com os interesses menos legítimos que dela tiram proveito. Se é certo que o Estado gasta muito com o funcionalismo público, não é menos certo que também existem despesas astronómicas na contratação de serviços externos, e até nas transferências para os Institutos Públicos ou nos apoios estatais. Mais uma vez, não está tanto em questão a necessidade e a legitimidade de constituir Institutos, nem os apoios públicos, geralmente sob a forma de subsídios, nem a necessidade do Estado realizar aquisições ou contratar serviços externos. Em abstracto, nenhuma destas acções é inerentemente perniciosa.
O argumento da ineficiência do Estado é repetido à exaustão. Existe uma justificação de carácter ideológico para isso. Enquanto a atenção está centrada no mau funcionamento do Estado, ninguém procura aprofundar as razões pelas quais ele se mantém assim, ou, mais correctamente, as razões pelas quais ele assim é mantido. É garantido que onde existe a oportunidade de defraudar, ou simplesmente explorar, um qualquer sistema, existirá quem esteja disposto a fazê-lo. Corre-se o risco pelos eventuais superiores benefícios retirados da operação. A vantagem em manter esta desorganização crónica é clara para os interesses que lucram com o despesismo do Estado. Somente com esta configuração semi-anárquica e semi-arbitrária da administração pública é que se perpetua a possibilidade de vampirizar os dinheiros públicos.
A optimização da racionalidade do Estado não serve senão os interesses dos que não têm real poder para exigir essas melhorias. Os verdadeiros lobbies, os do imobiliário, das energias, do turismo, das actividades financeiras, têm muito a perder com uma alteração nesse sentido. Aliás, não será por acaso e simples simpatia pelas pessoas que os políticos alternam entre os lugares estratégicos da administração pública e os cargos milionários do sector privado.
O Estado está permanentemente a ser atacado em várias frentes. Enquanto o ónus estiver artificialmente colocado sobre si, de uma forma abstracta, é mais difícil identificar os nomes e os interesses que provocam ou tiram proveito desta situação de desarticulação. Só com essa identificação se pode avaliar correctamente a dimensão do problema, com vista a inverter radicalmente esta calamitosa situação.

quinta-feira, setembro 23, 2004

Democracia "au Madeira"

O líder parlamentar do PSD, Guilherme Silva, justificou a não aprovação de um inquérito parlamentar ao desastroso episódio da colocação de professores, utilizando como principal argumento a politização dos inquéritos.

Nos dois anos e tal que leva de maioria parlamentar, quantos inquéritos parlamentares já foram viabilizados pela coligação PSD/PP?

quarta-feira, setembro 22, 2004

E um inquérito, não?

Tanto quanto se sabe, a Compta arrecadou à volta de 200.000 euros pela prestação deste brilhante serviço ao Ministério da Educação, quantia que talvez lhe tenha servido para reduzir o absurdo passivo que tem vindo a acumular, algo na casa dos vários milhões de euros (nos últimos anos apresentou prejuízos financeiros na ordem das centenas de milhar de euros).
Era interessante que alguém pegasse nesta história para a averiguar muito bem. Adjudicar um serviço a uma empresa em dificuldades financeiras, à qual estão ligados vários nomes de um dos partidos da coligação governamental, que se vem a verificar não ter conseguido elaborar um produto minimamente fiável... Há ainda outras perguntas a fazer. Por exemplo, por que motivo levou o ME tanto tempo a descartar definitivamente o problemático programa? Por que motivo só agora, quando a situação já é insustentável, se soube o nome da empresa que forneceu o programa? Pode ser só uma sucessão de infortúnios e coincidências, mas era melhor que alguém garantisse que realmente não tinha passado disso.

Comichões

Ontem à noite desenvolvi uma alergia a José Sócrates. A sua prestação, no debate da SICN, foi reveladora de uma capacidade de contornar assuntos difíceis (no mau sentido), de distorcer as palavras dos adversários, de instrumentalizar os temas e de uma vacuidade de propostas assustadora. De tempos a tempos, conseguiu alcançar uma deselegância que certamente poucos conheceriam. Este homem não vai trazer nada de bom para o PS nem para a política portuguesa, e existem sérias dúvidas que traga algo de bom para o próprio sistema democrático.

Sem comentários

"Meu Deus, ter que aturar esta seita", diz a senhora no autocarro, a propósito dos dois deficientes mentais que saem numa das paragens de Telheiras.

quinta-feira, setembro 16, 2004

Blogosfera

Pacheco Pereira, no Público, faz uma análise à blogosfera. O autor do Abrupto não poupou elogios ao mundo dos blogues. Talvez falte um maior reconhecimento da importância dos blogues com pendor mais criativo que informativo ou analítico, mas, de uma forma geral, a apreciação é muito positiva.

quarta-feira, setembro 15, 2004

Diário de bordo

O trabalho aperta e a Internet nem sempre está disponível. O blogue é que sofre.

Insulto

O discurso do ministro Bagão Félix só pode ser entendido como um insulto. O insuportável tom paternalista pertence às aulas do primeiro ciclo e não a um discurso sobre as finanças da nação. Bagão revelou ainda uma concepção minimalista do Estado, sem pendor estratégico, que renega implicitamente a função de unidade que este possui. Do discurso, pouco se aproveitou. O ministro não trouxe novidades. Limitou-se a constatar o que já sabemos há muito tempo sobre a saúde finaceira do Estado. Mas, mesmo sem novidades, o discurso de Bagão Félix é revelador de uma forma de ver a sociedade que entra em conflito com as pretensões demagogicamente nacionalistas que o PP costuma preconizar.
Para Bagão Félix, como para este governo, o Estado não deve unir os portugueses, mas sim separá-los. Não estando em causa a necessidade de reformas na Administração Pública, tem-se assistido, desde o governo de Durão Barroso, a uma fragilização do Estado, a qual vai sendo impingida com o argumento de corte nas despesas e aligeiramento do peso do sector público. Para isso, os governos PSD-PP não têm hesitado em colocar os portugueses uns contra os outros. Os reformados contra a função pública, os trabalhadores contra os desempregados, e todos contra o Estado. O fenómeno acentua-se com a actual governação de Santana Lopes. Como tem vindo a ser notório, a propaganda montada pelo primeiro-ministro envolve sempre uma componente de desculpabilização e de desresponsabilização. Há sempre o cuidado de introduzir uma variável, definida como incontrolável, absolutamente dependente de terceiros, o que vai permitir a sua utilização como válvula de escape quando os objectivos propostos não forem alcançados. É assim com o défice, com a produtividade e com os aumentos. Desta forma, a responsabilidade, partilhada ou transferida na íntegra para esses terceiros, define um alvo a abater pela opinião pública. Como os alvos não podem ser sempre os mesmos, as baterias vão sendo apontadas a diferentes sectores sucessivamente, agravando desigualdades e fomentando um clima de tensão social.
Actuando desta forma, este governo representa um perigo para o Estado, para os portugueses e para a nacionalidade. As suas opções contribuem para a desagregação do Estado, para o agravamento das dificuldades sentidas pelas famílias e pelas empresas e para a quebra dos laços sociais. Sem Estado, muitos dos referenciais que sustentam o conceito da nacionalidade ficam postos em causa.

segunda-feira, setembro 13, 2004

Três ideias e uma sugestão

Indexar taxas aos rendimentos declarados pelos utentes, enquanto não se proceder a uma alteração profunda na capacidade do Estado para aferir a veracidade dessas declarações, é introduzir ainda mais iniquidade num sistema já de si muito deficitário.

O Estado gasta muito com a saúde, é um facto. Os portugueses também gastam muito com a saúde. E recorrem com muita facilidade às unidades de saúde, sobrecarregando-as desnecessariamente. Pode poupar-se dinheiro, mesmo muito dinheiro, se o Estado (leia-se: o(s) governo(s)) se preocupar em estruturar um sistema de saúde que consiga responder com eficácia em níveis mais próximos do cidadão. Se os centros de saúde forem dotados de pessoal e equipamento que os habilite a uma prestação de cuidados de saúde mais abrangente, muito provavelmente os utentes deixariam de acorrer às urgências hospitalares com tanta frequência.

Embora os responsáveis políticos quase nunca falem nisso, reduzir a despesa no sector da saúde também passa pela prevenção e educação para a saúde. Este é um aspecto essencial, capaz de inverter tendências. O problema com a educação e prevenção é que não depende só da vontade das pessoas para adoptarem estilos de vida diferentes. Depende também da sua real capacidade. Num país em que milhares de pessoas passam fome e em que a pobreza atinge valores vergonhosos, não se pode pedir que coisas aparentemente simples, como os cuidados com a saúde oral ou com uma dieta alimentar equilibrada, possam atingir os níveis desejáveis.

A saúde é um dos indicadores mais objectivos do desenvolvimento de um país ou de uma região. Neste, como noutros casos, os números revelam bem o país que temos. A título de exemplo, podem ser consultados no site da Organização Mundial de Saúde alguns indicadores. A comparação com Espanha é já bastante elucidativa. Consultando as tabelas da ONS, podemos ficar a saber quantos mais anos saudáveis poderíamos viver se tivéssemos nascido do outro lado da fronteira (links para os dados sobre Portugal e Espanha). Interessante... ou deprimente, dependendo do ponto de vista.

sexta-feira, setembro 10, 2004

A candidatura de Sócrates

Miranda Calha publicou ontem um artigo de apoio a José Sócrates. O título é sugestivo: "Naturalmente, José Sócrates!". Mas o artigo, propriamente dito, começa assim:

"A demissão do secretário-geral do PS originou a realização de um congresso para escolha de um novo líder. Há três candidatos ao cargo. Julgo que José Sócrates já ganhou. Há quatro razões para tal."

De seguida, Miranda Calha enumera e explica estas quatro razões. A saber: a afirmação pela liderança (Sócrates é o único que é verdadeiramente candidato a líder), a clareza de opções (Sócrates não se compromete com coligações à esquerda), a ausência de clivagem esquerda/direita (Sócrates é o único capaz de operar no equilíbrio perfeito entre o melhor de dois mundos) e, por último, a visão do partido (Sócrates não avilta o aparelho partidário).
Estas quatro ideias dizem muito sobre a candidatura de José Sócrates, da qual Miranda Calha é apoiante. Para apoiantes como MC, Sócrates é o melhor porque quer ser um líder no partido e no país, mesmo que as eleições do PS não sejam extrapoláveis para as legislativas. A ambição parece ser mais meritória do que a validade das propostas. Outro aspecto interessante é a contradição notória entre a reivindicação de clareza de opções quando José Sócrates parece ser o candidato mais comprometido, incapaz de definir uma posição concreta sobre políticas de alianças. Nesse campo, qualquer dos seus dois adversários oferece uma posição muito mais clara e definida. Num cenário de maioria relativa nas legislativas, que nenhum candidato parece desejar, Sócrates é o único que não assegura aos seus eleitores a sua posição sobre um cenário de alianças. Ao certo, não se sabe o que esperar de uma maioria relativa com José Sócrates. Teremos uma reedição dos governos minoritários de Guterres, uma política pragmática de alianças à esquerda ou, até, um regresso ao loco central, reeditando uma aliança com o PSD? O terceiro ponto revela uma característica reconhecida na candidatura de José Sócrates. O ex-ministro do Ambiente é um herdeiro clássico da tradição guterrista de indefinição ideológica. O que nos leva de imediato a questionar a capacidade desta candidatura para apresentar soluções inovadoras. Bem pelo contrário, a candidatura de Sócrates radica em pressupostos muito conhecidos e, em alguns casos, bastante gastos. A quarta e última razão defendida por Miranda Calha como mais valia da candidatura de José Sócrates é a sua visão do partido. Mas, surpreendentemente (ou talvez nem tanto, para os mais críticos), para MC, José Sócrates representa uma vantagem para o partido ao renegar as críticas ao peso do aparelho. Aliás, à semelhança do que Jorge Coelho também vai dizendo, MC parece negar veementemente que no PS haja aparelho, caciques, interesses instalados ou relações dúbias no poder local. Para estes dois apoiantes, o PS é um partido de virgens e Felgueiras nunca existiu. Se é esta a postura dos próximos de José Sócrates, algo está muito errado com esta candidatura.
Em suma, a candidatura de Sócrates, na opinião de Miranda Calha, é uma candidatura vencedora e as razões são sobretudo a manutenção do status quo interno do PS. A análise até é boa, o problema é Miranda Calha pensar que são essas também as razões pelas quais José Sócrates merece apoio. De facto, o texto de Miranda Calha diz muito sobre a candidatura de José Sócrates, mas talvez também diga muito sobre Miranda Calha. José Sócrates pode, por causa ou apesar destas razões, ganhar as eleições para líder do PS. Miranda Calha apoia.

terça-feira, setembro 07, 2004

A escravatura no século XXI

O Abrangente, numa bela fotografia, recorda as fábricas de tijolo do Paquistão, realidade porventura pouco conhecida. Diz o Evaristo que se trata de um "trabalho duro e mal remunerado". É seguramente um trabalho muito duro, onde se corre mesmo risco de vida ou, no mínimo, de sofrer queimaduras graves. O que já não é tão imediato é o facto de as fábricas de tijolo serem um dos maiores albergues de trabalho escravo no mundo.
A escravatura é uma forma abjecta de exploração humana, mas, nalguns casos, assume dimensões sociológicas de extremo interesse. Neste caso particular, como consequência dos sistemas de valores vigentes entre algumas comunidades no Paquistão (mas não só), os esclavagistas não precisam de ser preocupar com a fuga dos seus escravos, uma vez que estes, por compromissos de honra, se sentem obrigados a permanecer nos locais. O trabalho escravo tem origem na absoluta miséria em que vivem muitas pessoas nesta região, o que as impele a contrair empréstimos que se destinam à aquisição de bens alimentares e muitas vezes são usados, na íntegra, para pagar dívidas já existentes. Sem dinheiro, estas famílias não têm mais do que a sua mão-de-obra para oferecer como garantia de pagamento. Ficam assim presas a um regime de trabalho não remunerado até que o credor julgue satisfeita a dívida. Não existe qualquer forma de controlo sobre o montante pago por estas famílias, sendo que o credor possui um poder absoluto sobre os termos do acordo que estabeleceu, podendo manipulá-los à sua vontade e conveniência, prolongando a exploração dos devedores para além de todos os limites. De uma forma geral, as dívidas vinculam toda a família e são extensíveis às gerações seguintes.
A única forma destas famílias se libertarem do seu credor passa por contrair um novo empréstimo junto de outro credor. A situação de exploração mantém-se, somente mudando o explorador. Esta decisão é tomada sobretudo quando as famílias sentem que as suas mulheres correm o risco de ser desonradas no local onde se encontram. Este é um motivo que se sobrepõe mesmo aos maus-tratos que possam sofrer durante a sua situação de escravidão.
A escravatura é uma realidade bem viva em demasiadas regiões do mundo. Ao contrário do que se possa pensar, muitas vezes está ainda enraizada nas tradições locais, ligada à miséria humana e aos códigos de honra vigentes. Mas é também possível encontrar situações no mundo ocidental, tendo sido relatados casos de escravatura, por exemplo, em grandes centros urbanos em França e Inglaterra. Não fará sentido comparar o carácter esporádico destes macabros relatos com a exploração sistemática que se regista noutros locais, mas, em qualquer dos casos, esta é uma realidade que não merece complacência e contra a qual se deve lutar sem tréguas. Cabe aos governos implementarem medidas de combate à exploração esclavagista nos seus territórios, assim como também lhes cabe a responsabilidade de pressionarem outros Estados a tomar medidas. E, já que a escravatura viabiliza economicamente muitos negócios, seria conveniente desenvolver medidas também nesta área. Numa era de globalização económica, com pouco controle sobre a circulação dos investimentos transnacionais, é muito complicado garantir que, através de sucessivos investimentos, o dinheiro não acaba a financiar negócios que estão ligados directa ou indirectamente ao trabalho escravo. Desenvolver meios mais eficazes de controlar esta situação, à imagem do que se procura fazer com a criminalidade financeira ou com o financiamento do terrorismo, e reprimir os responsáveis é um imperativo ao qual nenhum governo se devia furtar.

segunda-feira, setembro 06, 2004

Um governo que passeia

A impressão que faz um governo a passear de forma prazenteira, para ir almoçar não se sabe bem onde (mas também não interessa muito), enquanto a comunicação social, em comitiva, segue deliciada o espectáculo! Que se perceba bem, não é o almoço governamental, por si, que provoca comichões; é a aviltante faceta propagandística do governo e a forma como os profissionais da comunicação, gente que é suposto estar preparada para descodificar este tipo de informação, faz o papel de recipiente ideal. Um Conselho de Ministros realizado fora de Lisboa, sem qualquer justificação objectiva, não devia merecer atenção senão pelo desperdício de dinheiro público que acarreta, e uma passeata ministerial, que não passa de uma manobra de sedução populista, não devia nunca ocupar lugar nos noticiários. A menos, claro, que fosse para ser desmascarada como tal. Mas isso já é pedir muito. Para já, ficava contente se estas reverências terceiro-mundistas deixassem de ter lugar.

sexta-feira, setembro 03, 2004

Blogolivro

Um projecto muito interessante, a merecer atenção.

Relativismo sazonal

Quem é que disse que o Verão só acaba no final de Setembro?

quinta-feira, setembro 02, 2004

We belong together

Tattooed all I see, all that I am, all I'll ever be

Liberdade vs. Emprego

Indeed being insecure has resonance in people's attitudes, which at times can be detrimental to their ideas of a decent society. In a recent survey undertaken by the Latino barometro in Latin American countries, 76% of the people surveyed were concerned about not having a job the following year, and a majority said that they would not mind a non-democratic government if it could solve their unemployment problems.

Não comecem a dar importância a estas coisas e depois logo vêem.

quarta-feira, setembro 01, 2004

Agosto

O final de tarde de ontem já foi um pesadelo. Voltaram os lisboetas, voltaram os carros, voltou a azáfama. Há mais de um mês, um post sobre a qualidade de vida que Lisboa ganha em Agosto suscitou uma quantidade anormal (para os hábitos deste blogue) de comentários, e que ainda permanece como record a bater. A reacção foi tão inesperada que pensei em inaugurar uma rubrica de Grandes Verdades Universais, mas este é um espaço alérgico a compromissos. Correndo o risco de suscitar nova vaga de oposição ou, muito pior, de me tornar repetitivo, reafirmo que Agosto é o melhor mês de Lisboa. Infelizmente, acabou-se.

Transportes (pouco) públicos

A intenção de indexar o preço do passe ao preço do gasóleo só pode ser mais uma machadada na política de transportes públicos das áreas metropolitanas. Pela amostra que temos, desde a liberalização dos preços dos combustíveis, o sector encontra-se viciado, servindo desequilibradamente os interesses das petrolíferas, em claro prejuízo dos revendedores e dos consumidores. Desta forma, a revisão trimestral dos preços dos transportes públicos só muito dificilmente se traduzirá em boas notícias para os utilizadores. Assim, cada vez será mais apelativa a utilização de transporte próprio, contribuindo para o caos de tráfego que se vive nos centros urbanos.
A título de exemplo, em Inglaterra a tendência é exactamente oposta. Algumas empresas têm vindo a baixar as tarifas, o que se tem vindo a revelar muito positivo na recuperação do número de passageiros. Por cá é o que se sabe.

O mito

É incorrecto que a questão do aborto seja das mais debatidas em Portugal. Há pouca informação, quer seja por falta de estudo, quer seja por falta de divulgação. Não se pode confundir a visão que cada um tem sobre o tema com um debate amplo, baseado em informações apuradas através de estudos rigorosos, isentos e objectivos. A questão do aborto mistura a ética e a moral com questões sociais, económicas e de saúde pública. É esta interdependência dos factores que carece de clarificação e interpretação. Só assim se poderá alcançar um nível de debate que tenha utilidade.
Apenas uma coisa é certa, o aborto não é nem será consensual na sociedade portuguesa. Defender uma solução de consenso é utópico. Este é um tema em que, qualquer que seja a legislação, uma parte da população vai estar insatisfeita.

Links

Actualização da coluna de links com as seguintes novidades:

Amorizade
Apócrifo
Avenida dos Aliados
Contra a Corrente
desNorte
Esplanar
Hanamel.org
Lóbi do Chá
Meia Livraria
Nortadas
Olimpik Champ
Respirar o mesmo ar
Ser Português (Ter Que)
Touch Of Evil

Exigências

É curioso que seja a candidatura de José Sócrates a estabelecer as expectativas para a prestação da candidatura de Manuel Alegre. Mas verdadeiramente insólita é a semelhança entre o que se exige à candidatura de Manuel Alegre e o que se exigia à liderança de Ferro Rodrigues. Também em relação ao anterior SG as expectativas eram definidas externamente, pedindo sempre mais. Haverá coincidências?