Convenci-me, ao escrevê-lo, que o meu post sobre
a utilidade da compreensão do outro era carapuça para alguma gente de direita, daquela que não me dá troco, e que, por isso, estaria condenado a não ter eco. Estava eu nisto quando percebi que o João Tunes, pelo menos em parte, se tinha
candidatado a enfiá-la.
Não sei se por questões de estilo, julgo que o João e eu, volta e meia, nos desentendemos. Umas vezes assumimo-lo, outras calamo-lo. Não serão desentendimentos graves, no sentido de nos chegarmos a afrontar. São antes leituras diferentes do que escrevemos. Talvez, pois então, o problema do estilo. Suponho que já não é necessário revalidar os votos de estima mútua que nutrimos. Ambos o sabemos já há muito tempo. Arrisco falar pelos dois ao dizer que não somos pessoas às quais as divergências provoquem alergias. Cada um acredita naquilo em que acredita, argumenta, contra-argumenta e aprende o que tiver para aprender. Muito me apraz saber que o que aqui vou escrevendo encontra utilidade aos olhos de alguém. Mais agradado me sinto ao saber-me apreciado e reconhecido por pessoas com a experiência e a sagacidade do João Tunes. Não é necessário reafirmá-lo, pois, como disse, já ambos o sabemos. Quanto muito, servem estas linhas apenas para deixar claras as coisas para que quem por aqui passe também o saiba e não leia nas nossas divergências mais do que elas são.
Embora o João Tunes não seja dos que vêem as coisas assim, há muito quem queira puxar do gatilho a torto e a direito, julgando com isso resolver o que quer que seja. Era mais para esses que eu me dirigia. Relembro a fractura determinada pela administração Bush: “ou connosco ou contra nós”. Não posso aceitar que se veja a realidade assim. Se não passa pela cabeça de nenhuma pessoa bem intencionada trazer o terrorismo para o lado do bem (terminologia bushiana novamente), não é tolerável que se queira meter no mesmo saco do terrorismo todas as expressões que não se revêem nas respostas delineadas em Washington. É uma afirmação que tem tanto de falso como de ofensivo. Faz lembrar outra falácia que por cá se divulgou querendo fazer-nos a todos responsáveis pelo drama que se viveu durante anos na Casa Pia. Ora, eu não sou terrorista nem pedófilo e não aceito que me queiram associar a qualquer uma dessas actividades nem que me queiram responsabilizar por coisas sobre as quais não tenho qualquer responsabilidade. Não o aceito porque não admito que me queiram manchar o nome, que, embora desconhecido, merece respeito. Nem o aceito porque a estratégia de pedir responsabilidades a todos impede que se apurem os verdadeiros responsáveis. Não contem comigo para isso.
Se bem depreendo, as nossas divergências prendem-se com uma questão de prioridades. Eu digo "entender para melhor combater" e o João diz "combater melhor, entendendo-o". Não sei se é assim tão diferente. Limito-me a reafirmar que se não se souber quem se combate e quais as suas razões, dificilmente o poderemos vencer. Falhar a compreensão do inimigo é uma péssima estratégia para a batalha. Que o digam, por exemplo, Portugal em África e os EUA no Vietname e no Iraque.
Não se pode negar a racionalidade da acção a uma pessoa só porque o seu comportamento nos avilta. Assumir que o inimigo tem razões e estratégias para as implementar é o primeiro passo para saber como combatê-las. Afinal, se enfiar a cabeça na areia não é solução para nada, disparar em todas as direcções à espera de acertar também não resolve o assunto. Pelo contrário, pode revelar-se mesmo muito perigoso.
Ninguém quer promover líderes terroristas ao estatuto de líderes democraticamente eleitos. Pelo menos, eu não quero. Mas tenho muitas reservas com a utilização de uma palavra tão forte como “aniquilar”. Não duvido que as operações militares ou policiais possam ter objectivos não declarados de extermínio de pessoas. Não sou tão ingénuo a esse ponto. Sei que, tendo a oportunidade, os contendores arrumam com o adversário. Estaria a ser muito hipócrita se dissesse que não acharia o mundo um lugar mais aprazível sem Bin Laden e os seus acólitos. Mas continuo a acreditar que o sistema de justiça da modernidade ocidental representa um valor inestimável para a definição do nosso modelo civilizacional. Não se coaduna com desrespeitos pelos direitos humanos, liberdades e garantias. No dia em que concedermos nesses campos estaremos a perder a batalha. Não se combate o fascismo com mais fascismo. Não se combate o totalitarismo com mais totalitarismo. Não se combate o autoritarismo com mais autoritarismo. A resposta a todas estas formas de abuso continua a passar pelo reforço da democracia, pela afirmação inequívoca do nosso estilo de vida.
Mesmo perante os mais fortes indícios de crime, qualquer pessoa tem o direito a um julgamento justo. Os acusados de terrorismo não escapam a esta regra. Mesmo que andem a propagandear os seus feitos na internet ou em cassetes de video. Têm todos o direito a ser julgados. Aliás, temos todos o direito de os ver julgados. A aniquilação, tal como é praticada, por exemplo, pelo governo e pelas forças armadas israelitas, não é admissível nem se enquadra naquilo que queremos defender. Apresenta ainda um problema adicional. Aproxima-se perigosamente da arbitrariedade e nesta cabe sempre mais um. Primeiro vão os suspeitos de terrorismo, depois poderá vir mais alguém. Sem acusação formal, sem julgamento, sem condenação. Já sabemos onde estas coisas vão parar (o João sabe-o melhor que eu). Não precisamos de as reeditar para saber as consequências nefastas que acarretam. Não podemos assistir serenamente enquanto se vai cedendo os flancos da liberdade e dos direitos que tanto nos custaram a ganhar a troco não se sabe bem do quê. Os fins não justificam os meios, mesmo os que nos pareçam mais desejáveis, como o combate ao terrorismo.