A tortura é uma forma de terror, uma vez que tem uma componente que se relaciona com o medo que pretende impor não só à vítima mas também a terceiros não envolvidos directamente. Mal os actos de tortura se tornam conhecidos de outros que não os directamente envolvidos, quer seja voluntariamente ou não, o seu alcance passa a exceder a situação concreta em que se verificou. Passa a haver uma generalização da arbitrariedade e dos abusos, sobretudo nas representações que se constroem. Ou seja, mesmo indivíduos que não estiveram directamente envolvidos em nenhuma situação de abuso conseguem identificar perfeitamente em que lado da relação se poderão encontrar.
Os objectivos da tortura extravasam largamente a obtenção de informações ou a repressão aplicada individualmente. É impossível dissociar esta prática das medidas de controlo social e definição de relações de poder. De qualquer forma, qualquer que seja o sentido atribuído e o objectivo pretendido pelo torcionário, resulta sempre que existe uma vítima condenada às sevícias. O que importa reter é que determinada pessoa, ou determinado grupo de pessoas, decidiu recorrer a estas práticas, que elas existiram. O que se encontra por trás desta escolha é uma incapacidade de reconhecer as vítimas como semelhantes, uma recusa da sua humanidade e da sua dignidade. Ou então, uma capacidade de subalternizar estes valores a um interesse julgado superior. A frequência e a extensão no tempo dos abusos não assumem uma importância fundamental, embora os números ajudem a impressionar. No entanto, trata-se de uma contabilidade mórbida. Qualquer abuso cometido é uma situação intolerável que gera os sentimentos já descritos. Porque um caso de abusos já é um caso a mais e porque, de facto, por mais esporádicos que sejam, ninguém consegue garantir que não será a próxima vítima.
Ora, dito isto, se fizermos a sua aplicação aos abusos cometidos nas prisões iraquianas e em Guantanamo (ou em qualquer outro lado em que estas situações se repitam, seja em Cuba, na Coreia, na Rússia, em Espanha, na América Latina em Portugal, etc.), temos de um lado um grupo de pessoas que recorreu a actos de extrema violência física e psicológica sobre outras pessoas e do outro as suas vítimas. Evidentemente, talvez os actos praticados pelos militares da coligação, com ou sem autorização ou supervisão superior, possam não rivalizar com os anteriormente praticados no regime de Saddam. Evidentemente, pode haver pessoas envolvidas que, baseadas na convicção de que os fins justificam os meios e que, deste modo, contribuem para a segurança de todos nós, patrocinam estas violações da integridade do ser humano. Mas se não conseguirmos reconhecer que nesta lógica está presente a mesma violência gratuita, o mesmo abuso abjecto, a mesma capacidade de violar e corromper todos os valores da liberdade, da dignidade e da integridade em troca de qualquer outro interesse, então já perdemos a capacidade de estabelecer diferenças. Se estivermos preparados para abdicar destes valores, mesmo que a troco de uma pretensa segurança contra o terrorismo e a iniquidade, então já pouco temos para salvar. Passámos para o outro lado da barreira. Sem o perceber, já passámos para o lado do inimigo e somos todos terroristas de nós próprios.
Por estes motivos, é fundamental que nas sociedades que não se revêem nesta hierarquização de prioridades se tomem medidas inequívocas perante tais situações. Essas medidas devem passar pela exorcização de qualquer resquício de cedência. Isto implica que os responsáveis directos e indirectos, os que tiveram conhecimento e não ajuizaram a gravidade das ocorrências, os que não tiveram conhecimento mas possuem responsabilidade política sobre os restantes sejam chamados a responder. E, inevitavelmente, sejam afastados das suas funções. O preço a pagar é alto, mas é a única forma de corresponder inteiramente à gravidade das ofensas cometidas.